A GRATIFICAÇÃO

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Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seujardim, há uma estátua nua que, nas noites frias, morre gelada.) Seupalácio saiu nos "mais belos interiores" de Manchete. Mas o que mefascina, em certas casas, é o requinte. Outro dia, fui visitar outrocasal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma piainexcedível. A pia ainda não era nada. O que me deslumbrou foi abica. Enxuguei as mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe,de olho rútilo: — "Que bica! Que bica!". E ele, na sua flamejantemodéstia: — "Ouro maciço!". 

Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquelaque, certa vez, dizia, lânguida, meio alada: — "Eu sou amanteespiritual do Guevara". Em seguida, voltando à vida real, levou-nospara ver o retrato do "Che" em sua alcova. Lá estava ele, de boina; abarba crespa virilizava a doçura da expressão quase infantil. Poisbem. E foi justamente a "amante espiritual" de Guevara quetelefonou, ontem, para mim. 

Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato de Guevara ia bem desaúde etc. etc. Zangou-se, risonhamente: — "Cada vez maisreacionário!". E eu: — "Pelo amor de Deus!". Mas ela estava compressa e foi dizendo: — "Vem hoje aqui em casa, ouviu?". Criou ummistério, um suspense: — "Tenho uma surpresa". Resisti de purocharme. Finalmente, disse que ia. Assim nos despedimos. 

Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe: — "E a surpresa?".Brincou com a minha curiosidade: — "Calma, calma". Acaboudizendo que a surpresa era um padre. Assustei-me: — "Padre depasseata?". Fez espanto: — "Que história é essa de padre de passeata? Isso não existe!". Expliquei-lhe que o padre de passeataera um fato concreto e histórico, Acabou admitindo que, realmente, osacerdote comparecera a duas passeatas; e acrescentou: — "Umacabeça. E olha. Mais inteligente do que d. Hélder". Chamou o maridoque ia passando, e perguntou: — "Não é mais inteligente do que d.Hélder?". O marido disse, grave, taxativo: — "Uma cabeça!". Se era"uma cabeça", e "mais inteligente do que d. Hélder", eu estavadisposto a vê-lo e ouvi-lo. 

Pouco depois, chegava "a cabeça". Nada de batina. O sacerdoteestava vestido como um anúncio da Ducal. Quando apareceu, houveum frêmito em todos os decotes. Fui apresentado. "Muito prazer", departe a parte. Duas ou três o levaram. E a dona da casa dizia, nomeu ouvido: — "Vai falar sobre sexo". Insinuei: — "Já estou muitovelho para educação sexual". Mas uma outra a chamava. Afastou-se.E eu fui olhar na janela, que se abria para a noite. 

(O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grãfinas. Especializara-se em sexo e Guevara.) Daí a pouco, souchamado: — a "cabeça" ia falar. A anfitriã fizera um teatrinho, comumas cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao nível daplatéia. Alguém me sussurrou: — "Uma cultura!". E, justamente, a"cultura" começava a falar.  

Disse, preliminarmente, que ia fazer uma palestra informal.Estaria disposto a responder perguntas. Mas frisou: — "Estamosaqui num encontro informal". Dizia "informal" com particularsatisfação, como se a palavra lhe fizesse cócegas no céu da boca. Nãocomeçou, imediatamente. No pequeno palco, andava de um lado paraoutro, de cabeça baixa, as mãos trançadas nas costas. E, súbito, daprimeira fila, a anfitriã sugere: — "Conta aquela".

 Parou, risonhamente, no meio do palco. Fingiu um lapso: —"Qual?". E a outra: — "Aquela!". Empina o queixo, faz um esforço dememória: — "Aquela?". Risos. As pessoas achavam graça. Ele sentiuque o lapso era um efeito. Fechava os olhos, cruzava os braços. Teve que admitir: — "Sinceramente, não me lembro". E, como ele não selembrava, não se sabia o quê, explodiu a gargalhada. O padre depasseata dramatizou o lapso. Apertou a cabeça entre as mãos.Sentiu o sucesso e o agarrou. Há de ter pensado: — "A platéia estáno papo". 

Um sujeito, a meu lado, com uma barriga de ginecologista,repetia, banhado em delícia: — "Uma cabeça! Uma cabeça!". Fui,então, varado por uma súbita recordação auditiva. Há um tango deGardel que começava assim: — "Por uma cabeça" etc. etc. E o tangodevia ser de Gardel e Le Pera. Na platéia, já batiam palmas. Era oprimeiro lapso aplaudido. A dona da casa explicava: — "Aquela daprostituta. Aquela!". 

O padre de passeata bateu na testa: — "Agora me lembro". E aanfitriã, de pé, virava-se para a platéia; dizia, radiante: — "Ótima,ótima!". Sentou-se novamente. Andando de um lado para outro, osacerdote não tinha pressa. Parou numa extremidade do palco. Deperfil para a platéia, olhando para o alto, disse: — "Realmente,realmente". Começou: — "Prostituta". Suspirou. E, já no centro dopalco, explicava: — "A prostituta não me espanta". Perguntou, desupetão, à platéia: — "Os senhores se espantam com um bombeirohidráulico, um ourives ou protético?". Silêncio. Recomeçou: — "Serprostituta também é um ofício". Repetiu, com certa ferocidade: —"Ofício, ofício, ofício". Pausa. Novo suspiro: — "Profissão". Profissão,como outra qualquer. "Ganha-pão."

 Ria agora: — "Aconteceu comigo um fato. Um episódio. Fato derua". Jogando as pausas, usando silêncios, ele deliciava ospresentes. Disse: — "Nem sei se deva contar". Vozes protestaram: —"Conta, conta!". E o padre de passeata dispôs-se a contar. Agoraestava mais ágil, mais lépido, mais brilhante: — "O caso é o seguinte:— fui abordado por uma mulher da vida. Digamos: — mulher davida. Me abordou".

 Excitação na platéia. As pessoas se entreolhavam. Longa pausa. Foi de uma extremidade a outra e vice-versa. Disse: — "Me fezuma proposta". E, súbito, em tom castamente informativo, ele falouque, hoje, há trottoir por toda a cidade. "Até na porta da igreja." Nopassado, a prostituição estava localizada. Hoje, não. Às vezes, emruas rigorosamente familiares, estritamente residenciais, nós vemosuma moça. Parece uma menina. O sujeito jura que é uma menina defamília. E, ali, na calçada onde as crianças brincam, ela estáexercendo uma profissão. "Não direi profissão infame, porque não háprofissões infames. Há profissões." 

Vozes perguntam: — "E o que é que o senhor fez?". Repetiu,criando um suspense delicioso: — "O que é que eu fiz?". Continuou:— "Ela falou comigo em português. E eu respondi em alemão".Perplexidade divertida. A "amante espiritual de Guevara" pediu: —"Diz por que é que o senhor falou em alemão". Sorria, banhado emsucesso: — "Pelo seguinte: — porque eu queria passar porestrangeiro. Saíra da igreja, estava sem batina. Pra todos os efeitos,eu não estava entendendo nada". A dona da casa, em pé, protestou:— "O senhor não está contando direito. Conta, conta. Por que é que osenhor não podia entender a proposta?". E ele, iluminado: — "Porquese eu entendesse a proposta e recusasse, ela ia pensar que eu soupederasta". Foi uma ovação formidável. Os decotes se atiravam parao palco. Era uma euforia geral. E ele, que falara tão pouco, e usaramais pausas do que palavras, suspirava: — "Cansei". Vozes: —"Genial! Genial!".

 Meia hora depois, a "amante espiritual de Guevara" chamou-onuma outra sala. E lá o padre de passeata recebeu, no envelope, ocachê.

 [10/8/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora