Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismopresente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numacapa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando umaimagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capasde Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, oúnico plebeu da festa. E, súbito, passou por mim um colar debrilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóiascaras.
E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás. Mas, seme perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido,não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, dianteda jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dosbrilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles.Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço dascoisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço umafortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — "Aquele colarcustou trinta segundos da festa do Patino".
Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã. Opretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E,depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, emarroubos: — "Que diálogo! Que diálogo!". Houve um momento emque parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentarcom os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia:— "A mulher brasileira não chega aos pés da francesa". O culpado docolar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi. E a mulher,com um frêmito nos brilhantes e no decote: — "o Brasil é um país de quinta ordem". E, então, o marido, obeso como um Nero deHollywood, faz esta síntese crudelíssima: — "O brasileiro não sabefazer uma frase".
A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria anossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classeconseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vimpensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outrapátria seria a França. Quando o táxi passou pelo relógio da Glória,eu pensava em D'Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal.Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Osdespeitados, que sempre os há, perguntavam: — "Por quê? Porquê?". Fisicamente, D'Annunzio era o antifauno — pequenino, debarbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia ondeacabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou emqualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só umasenhora resistiu à frase de D'Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe umsoneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.
Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênioverbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o queeu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês nãosabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto éapenas o reforço plástico da frase. Vejam a última "RevoluçãoFrancesa". Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça deninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas osrevolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia defrases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a jáinsuportável "É proibido proibir". Essa frase já foi bonita. Mas,pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-sede um tédio auditivo hediondo. Logo se viu, porém, que era umareles pose verbal da massa francesa. "É proibido proibir", mas osseus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e asmodernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, ovento da "jovem irracionalidade" varreu a França.
Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será queelas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro "nãosabe fazer uma frase". Dirá um patriota de penacho: — "Mas éinjusto! Injusto!". Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez sejauma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazemdesconfiar de nossa potência verbal.
Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lheacrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês sePedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. Ogesto mudo significaria mais cem anos de colônia. Todavia nãoprecisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houveaqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossaselites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervirna vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre omilagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, nãoem poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam asnossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentosanos de ociosidade, de praia, de Antonio's — elas saíram paradescansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão,no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.
E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir quedevem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Masqualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foio que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história.Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de umainveracidade total. O brasileiro senta como ninguém. Na hora dafrase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.
Felizmente despontou o Festival da Canção. E como osconcorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o"É proibido proibir". Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros,como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiqueitocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não sejadele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frasesjorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões,sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de umcentauro de artista e de herói.
Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltoua frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que elecantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera. É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depoisde tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.
[28/9/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...