AS BOLACHAS

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Em recente confissão, dizia eu que o milionário brasileiro épobre de mesa. Tem dinheiro para banquetes suntuários. Sequisesse, comeria 25 leitões no café. E ainda teria quinhentos frascosde geléia para lhes passar por cima. O diabo é que, psicologicamente,o nosso milionário continua pobre.E, nessa alma de pobre, está todo o patético, todo o sublime dorico brasileiro. Seu automóvel tem cascata artificial com filhote dejacaré. 

Sua esposa gasta mais do que 25 amantes. Sua amante gastamais do que 25 esposas. Conheço um milionário que amou umajovem senhora. Disseram: — "Gosta do marido!". Teve um riso torpe:— "Eu compro". Achava que tudo se compra e tudo se vende.Começou a conquista. Ligava e a outra batia-lhe com otelefone. Mandou-lhe rosas. Na frente do mensageiro, a moçasapateou em cima das flores como uma espanhola. Na suaobstinação fanática, dizia o milionário: — "Há de ter seu preço! Todastêm um preço!". E, um dia, mandou-lhe um colar de pérolas,legítimas, dessas que, segundo ele, subornam uma rainha. Esperou24 horas, 48. E, como não houve devolução, pôs a boca no mundo:— "Comprei, comprei!". 

Os amigos, os conhecidos e parentes já admitiam: — "Vendeuse!". Até que, quatro ou cinco dias depois, os dois se cruzam numarecepção grã-finíssima. O milionário tem um choque delicioso: — elaestava com o colar, usava o colar, com um divino impudor. "Cínica",eis o que pensava o milionário. E, súbito, ela o vê. Pede licença auma outra senhora, com quem conversava, e vem ao encontro doconquistador. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Parou diante domilionário; com um gesto leve e ágil, tirou o colar (ele não estavaentendendo nada). Em seguida, segurando o colar como a um relho,deu-lhe em pleno rosto a primeira lambada. O salão parou; osconvidados tinham uma cara idiota. 

Sim, uma cara idiota como setodos ali fossem figuras de museu de cera. As pérolas explodiam emcada face do milionário. Não houve uma palavra entre os dois. Sóhouve a surra de pérolas.E o pior foi depois. Aquelas casacas e aqueles decotesagachados e apanhando, vorazmente, as pérolas espalhadas. Bem.Contei o episódio e não sei por que o fiz (realmente). Ou por outra: —já sei por que contei uma surra tão cara. É que esse brasileiro ricopossuía uma alma de pobre, e repito: — tinha velhas fomesenterradas na alma. 

Por vingança de pobre, de pau-de-arara, queriatudo comprar e tudo corromper.Falei do milionário brasileiro. Mas há um outro patrício aindamais fascinante. Refiro-me àquele que não é, mas será rico algumdia. Por exemplo: — o meu amigo Asdrúbal. Espírito admirável,ensaísta de uma lucidez apavorante. Eis o que eu queria dizer: —Asdrúbal conheceu a fome, a boa, a santa fome.

 E, no entanto, traziaum milionário em seu ventre. Hoje é homem de televisão,empresário, tem automóvel etc. etc.Percebi que o Asdrúbal ia ser milionário quando, certa vez, semum tostão, comprou uma ilha. Sim, uma ilha do Pará, meioparadisíaca, com jacarés por toda a parte. Não há mais carambolas.Pois a ilha do Asdrúbal tem carambolas. E ele a comprou sem umníquel. Só um milionário nato podia ter um gesto assim, dionisíaco.Mas não me importa muito o atual Asdrúbal, bem-sucedido, de largae cálida euforia. Não. 

O melhor Asdrúbal é o da fome. Ele poderiadizer: — "Eu já fui o Raskolnikov!".Não matou as velhas. Tem uma estrutura doce demais paraisso. Mas roubava livros. Morava então com o Carlinhos de Oliveira e o Ferreira Gullar, numa água-furtada, e havia, lá, uma clarabóia,como nos romances de Paulo de Kock. Eis o que fazia o nossoRaskolnikov: — roubava livros. Entrava numa livraria e, como um"virtuose", um estilista, apanhava três, quatro volumes. Era quaseum número circense. Ninguém percebia nada.

 E lá ia o nossoAsdrúbal vender os livros ao Mário Pedrosa. Este era o grandefreguês.Não só o Mário Pedrosa, evidentemente. A freguesia doAsdrúbal era imensa, inclusive senhoras e até padres. EugeneO'Neill, quando se tornou milionário, costumava dizer: — "Ah, sótenho saudades da fome!". Sim, saudades das noites do cais. Suasentranhas se contraíam na náusea da fome e não havia o quevomitar. A nostalgia do Asdrúbal, ou a sua vaidade, é o adolescente enobilíssimo ladrão literário. Só roubava do bom, do melhor! Era,repito, um ladrão crítico, que excluía qualquer subliteratura.Eis o que eu queria dizer: — quando Asdrúbal for milionário, afome estará enterrada, no seu sangue e na sua alma.

 O ladrão delivros, de um gosto tão lúcido, e tão fino, e de uma sensibilidade tãoerudita, não há de morrer jamais. E é justamente esse passado quefaz do Asdrúbal uma natureza tão complexa, irisada, dramática.Outro que não seria nada se não tivesse para pisar o grande chão dopassado é Plínio Marcos.Hoje, é uma das figuras mais obsessivas dos nossos palcos. 

Portoda a parte, lê-se e ouve-se o seu nome. É representado,simultaneamente, em três, quatro teatros. Já foi tudo, como KnutHamsun. Raros brasileiros podem entrar numa sala e anunciar, defronte alta: — "Já fui palhaço". E, no caso de Plínio Marcos, com umaagravante dramática: — era o palhaço sem graça, o palhaço que nãofazia rir. Uma vez representou para quinhentas crianças.Fez o diabo. As suas cambalhotas elásticas, acrobáticas, nãoarrancavam um sorriso. 

Quinhentas caras amarradas. Até que oPlínio Marcos explodiu: — parou no picadeiro e, na sua fúria, dava arrancos triunfais de cachorro atropelado. Nunca mais foi palhaço,nunca mais. Mas sua experiência culminante não foi de palhaço: —foi de ladrão.Um dia, ficou de sentinela de um avião, se não me engano, daCruzeiro. Estava lá, na sua função, armadíssimo, disposto a fuzilar oprimeiro suspeito. E, súbito, chegam os assaltantes. Era um bandode rotos, de esfarrapados, crioulos, brancos, e, no meio dosmiseráveis, um leproso. Um súbito e móvel pátio dos milagres. 

Queriam pilhar o avião. Eis o dilema do futuro dramaturgo: — oufuzilava, ou confraternizava. O avião estava cheio de bolachas. PlínioMarcos vacilou um minuto,dois. E, por fim, tomou a liderança doscanalhas. Invadiram o avião e saquearam as bolachas.Pouco depois era preso, arrastado à prisão. Degradaram-nocomo a um Dreyfus sem Zola. Uma mão feroz arrancou-lhe osbotões, um a um. Foi toda essa experiência de Dreyfus, todo essepeso vital que ele pôs na sua nova peça. Ah, é um texto que dará aoespectador, no fim do espetáculo, a vontade de chorar, eternamente,sentado no meio-fio. 

[15/3/1968] 

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora