Eu me lembro do gráfico Arlindo, que foi, há trinta anos oumais, chefe de oficina de O Globo. Jamais poderei esquecê-lo.Imaginem vocês que o velho Arlindo não bebia café na xícara, comoqualquer um de nós. Não. Derramava o café no pires e bebia dopróprio pires. E nada descreve a volúpia com que o fazia. Parecia umdesses prazeres jamais concebidos.
Aquilo me impressionava muito. Eis o que me perguntava: —por que o pires e não a xícara? Até que, na madrugada de ontem,resolvi fazer uma experiência. A úlcera começou a doer e fui apanharleite na geladeira. E, como o velho e finado Arlindo, bebi um pires deleite. Por uma dessas ingenuidades fatais, eu estava esperando umefeito mágico. Mas vejam vocês: — o pires não dá nenhum saborencantado e repito: — o leite em pires, copo ou xícara é a mesmabebida hedionda.
E, então, meio frustrado, lá vou eu para a janela damadrugada. Súbito, começo a pensar no meu ex-inimigo PauloFrancis. Já nos chamamos de "palhaços", de "analfabetos", de"burros". Lembro-me da estréia de minha peça Perdoa-me por metraíres. Era, ali, no Municipal. Ao baixar o pano sobre o terceiro ato,a platéia explodiu. Metade vaiando, metade aplaudindo. O entãovereador Wilson Leite Passos puxou um revólver e queria fuzilar otexto.
(O patético, ou sublime, como queiram, é que eu representei.Foi, da minha parte, um gesto suicida. Eu sabia que era o pior atordo mundo, o pior. Mas como se tratava de uma peça desesperada,quis ser solidário com a obra, o produtor, o diretor e os artistas. E representei. O prodigioso é que a platéia falava mais do que o elenco.Na primeira fila estava uma senhora gorda e patusca como umaviúva machadiana. Passou os três atos me chamando de "tarado". Eoutras senhoras, e outros cavalheiros, me xingavam, o tempo todo,em cena aberta.)
E, no final, tive a vaia e tive a apoteose. Do palco, vi grã-finassubindo nas cadeiras, aos uivos, contra e a favor. E estava lá o PauloFrancis, com o Edmundo Moniz. Berrava para mim: — "Burro!Burro!". Contam-me que o Edmundo Moniz protestava: — "Não façaisso! Não faça isso!". Nada me ofendeu, e digo mais: — achei a vaiaestimulante. Nem me impressionou o vereador, de revólver, querendodar tiros como um Tom Mix. Mas sofri quando o crítico me chamoude "burro".
Um mês depois, caí doente. Circulou que fora um derrame eque eu estava paralítico de um lado, sei lá. E, então, o Paulo Francisnão pensou duas vezes: — foi para a redação e escreveu uma páginacrispada de ternura. Foi aí que, subitamente, descobri tudo. Era umpobre ser, de intensa, desesperada fragilidade. O meu caso clíniconão foi trombose, nem eu estava hemiplégico. Seja como for, tive avisão de sua dilacerada, envergonhadíssima bondade. Era um falsocínico.
Mas ainda assim, passamos anos sem um cumprimento, semum "olá", sem um aperto de mão. Até que, no aniversário do JoséLino Grünewald, o anfitrião ofereceu-nos uma noite de ópera. Houveum desfile dos divos de velhas gerações. Foi uma rajada de carusos,de muros, lauri volpi, totti dal monte, schipa, tita rufo. E, súbito, oPaulo Francis começa a falar comigo. O teatro dramático nos separoue o teatro lírico nos uniu. Eu, o Paulo Francis e o José LinoGrünewald somos loucos por ópera.
Foi esta a última vez que o vi. Depois do aniversário, eledesapareceu. E, pouco a pouco, a sua ausência foi adquirindo umadensidade, uma tensão insuportável. Houve um momento em que me ocorreu a seguinte e fascinante hipótese: — "O Paulo Francis entroupara um convento". Imaginem: — o Paulo Francis franciscano,beneditino ou jesuíta. Ontem, porém, almoço com o José LinoGrünewald. E o meu amigo solta a notícia: — "O Paulo Francischegou". Estava viajando.
Não era absurda a idéia do convento. Viajar é também umaforma de solidão. Pergunto ao José Lino: — "E que tal?". O PauloFrancis andara pela Europa e dera um pulo aos Estados Unidos. Nãosei de tudo que ele viu e ouviu. Só sei de duas coisas que oassombraram: — primeiro, a liberdade americana. Nos EstadosUnidos, tudo se diz e tudo se faz. A liberdade estourou todos oslimites. Outra coisa que o impressionou: a Alemanha Oriental.
Na Alemanha Oriental, não entram nem Sartre, nem Le Monde.Segundo as autoridades comunistas, o povo, lá, ainda não estápreparado para ler Le Monde. Quanto a Sartre, não sei por queexpulsaram os seus textos. Mas o que importa é o simples fato: — aAlemanha Oriental abomina Sartre. E, como uma ditaduraanalfabeta, há de perseguir outros autores, e livros, e idéias, ejornais.
Mas imagino que, ao desembarcar no Galeão, o Paulo Francistenha feito a pergunta dramática: — "E aqui? E aqui?". Como secomportara o Brasil na sua ausência? Como agiram e reagiram osnossos intelectuais? E qual foi a ação das esquerdas? Se eu estivesseno aeroporto, contaria o histórico comício de 1º de maio, no campode São Cristóvão. Foi um ato longamente concebido e amorosamenteexecutado. Tratando-se do "Dia do Trabalhador", as esquerdasaproveitaram a data universal para uma demonstração de força.
O d. Hélder fala muito em "conscientização". Outros exaltam "amaturidade política" do nosso povo. E há, por todo o Brasil, umfurioso ímpeto libertário. Portanto, o comício do campo de SãoCristóvão devia dar, segundo os cálculos mais modestos, uma rendade 416 milhões de cruzeiros antigos.
E, de fato, a partir das dez horas da manhã, hordas ululantescomeçavam a varar a cidade. Da Zona Sul, Norte e Centro, partiammultidões ventando fogo. E havia, também, uma tempestade debandeiras. Um turista que por aqui passasse e visse esse vendavalhumano havia de imaginar que começava, aqui, outra revoluçãofrancesa. D. Hélder diria que era a "conscientização". E era a"conscientização". Só que houve um ligeiro desvio de itinerário. Emvez de ir para o campo de São Cristóvão, o povo rumava para oEstádio Mario Filho.
Imagino a perplexidade amarga do Paulo Francis: — "E ocomício?". Diria eu: — "Houve o comício". Insistiria o Paulo Francis:— "Não foi ninguém?". Resposta: — "Foi. Compareceram osoradores". Se o Paulo Francis perguntasse — "E o público?" — euresponderia que os oradores eram oradores e público. Faço umaidéia do imenso e divertido espanto do meu ex-inimigo. Desembarcano Brasil e sabe de um orador que faz o discurso e urra "bravos","bravíssimo", para a própria retórica.
[9/5/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...