É uma fotografia de Manchete, e com a agravante: — colorida.Lá está o sangue coagulado. O olho enorme, que ninguém fechou; eos intestinos escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãosentrevadas pela morte. Morreu, não há dúvida, morreu.E odeia. Morreu com esgar de ódio, com a boca aberta em grito.Nem sei se é de um lado ou de outro; se é guerrilheiro ou não.Morreu, mas o ódio sobrevive. É um cadáver e continua odiando.Olho a fotografia e vejo tudo. Não é americano, não pode seramericano. Tem de ser do outro lado, e explico.O mistério de Manchete está na impressão, em cores. Seusanúncios são graficamente exemplares. Lembro-me de uma saladade página inteira. A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese,tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete imprimiu o cadávervietnamita com o mesmo virtuosismo da salada.Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela miséria dentária.Eram cacos, não dentes. Dirá alguém que de um lado e do outro hámaus dentes. Seja como for, instala-se em mim a certeza, talvezpueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos pendurados nasfeias gengivas. O que realmente apavora é o ódio. Imaginem vocêsque acabo de receber a carta de uma leitora. É uma brasileira queme escreve e não assina. A meu ver, não há carta anônimaintranscendente. Se não tem assinatura, passa a valer como umdocumento trágico. Desde os velhos folhetins, a carta anônima é deuma veracidade apavorante.A leitora fala da moça chamada Gisela, que morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de hospital em hospital, e nãoencontrou um médico, uma enfermeira, um estudante, um porteiro.Teria sido salva, sem maiores problemas, se alguém a atendesse emtempo. Mas vinha um médico, olhava o braço partido e dizia: — "Nãoé urgente". E a mandava embora.Qualquer barbeiro diria: — "É de urgência, sim". Mas nãohouve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio. Não houve umaenfermeira, nem um funcionário. Há uma escola que se chama,pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras, práticas ou formadas,as serventes, ninguém teve pena, simplesmente pena. Temos pena deuma cachorra manca. E ninguém teve pena da gangrena em flor.No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão nítido, tão límpido,tão inequívoco. Qualquer um, a olho nu, veria a cor da gangrena e daorquídea. Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os hospitais,continuavam a negar, de pés juntos, a gravidade e a urgência. Atéque a menina morreu, apenas morreu, e nada mais.E, então, a leitora me escreve. O que me impressionou na cartafoi o ódio. Um ódio só comparável ao do cadáver que continuavaodiando. Sempre digo que o verdadeiro amor continua para além davida e para além da morte. Mas vejo o cadáver da guerra. E sinto quetambém o verdadeiro ódio dura mais que a vida e dura mais que amorte. Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu, não airritação efêmera, não a raiva que passa, não o protesto que seesquece. Não, não. Ela toma uma posição radical. É uma paixão quenão conhecia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer nada.Nada, nada?Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente nada. Mas a leitoratem um tesouro de ódio, íntimo tesouro, que não sabe como aplicarou contra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é que morreuuma só e repito: — uma só Gisela. Se fossem duzentas, trezentasGiselas, talvez tivéssemos, por aí, um surto de piedade convencionale enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignificação numérica que comove de uma maneira muito epidérmica e ineficaz.E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos toda uma imensaorganização, toda uma estrutura gigantesca. E sabem para quê?Para que um médico olhe uma gangrena inequívoca, óbvia,evidentíssima, e diga: — "Não é de urgência". Ora, eu sou umobsessivo. E uma das minhas idéias fixas é, justamente, a seguinte:— o médico ou é um santo ou um gângster. Meu Deus, não vejamnas minhas palavras nem exagero, nem caricatura.Um médico tem responsabilidades que ninguém tem. Estoudizendo o óbvio, mas paciência. O médico só devia ser médico depoisde sofrer uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos. Osujeito teria de passar três anos nos cafundós da África, tratando denegros leprosos. Como é que se pode passar um atestado de óbitosem tremer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina umatestado de óbito substituiu Deus e O antecipa.Mas não se aflijam. Os médicos que não identificaram agangrena, que não enxergaram o óbvio e despacharam alegremente amoça continuarão a fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, aassobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mereceu de Mancheteuma impressão de salada. Eu falei de dois ódios e passo a umterceiro. Desta vez é um chofer de praça.Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas aorigem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Umdia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Suamulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar.Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passoulá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeirogrito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando,apenas imitando a dor da carne ferida.Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou setemarginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrouno quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como aleitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, osmenos culpados. Episódios assim são uma rotina que jamais variou.Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; podeacontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e trêsnoites. Ninguém se mexe na delegacia.A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o Teatro Jovem ialevar, se passa num xadrez. Seis ou sete marginais estão em cena. E,de repente, entra mais um preso, um adolescente, preso porquebrigara num bar do Leblon. Os outros o agarram, e qualquer umpode imaginar o resto. Pergunto: — que faremos nós? Desta vez, foitomada a providência justa: — interditou-se a peça. Obscena é adenúncia e não a monstruosidade. A moral está salva, porque seemudeceu uma peça. E o ser humano continuará sendo violentadoem cada xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento éimpotente, como o ódio do chofer.
[20/3/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...