O ESPANTOSO SILÊNCIO

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Hoje, a praça de São Marcos tem mais turista americano do quepombo. E muitos, inadvertidamente, dão milho aos americanos e deixam ospombos a ver navios. Graças a Deus, a nossa Cinelândia ainda não foi invadidapelos nossos irmãos do Norte. De sorte que, lá, os pombos ainda constituem umasólida maioria. Diria mesmo que a Cinelândia tem mais pombos do que o sonetode Raimundo Correia. E são tão mansos, de uma tal docilidade, que parecemamestrados. Todas as manhãs e todas as tardes vem uma mão anônima eamorosa dar-lhes milho. O que então acontece é uma espécie de milagre, desuave milagre. Às centenas, aos milhares, sei lá, descem pombos de não sei quemisteriosos telhados, de que encantados beirais. É lindo vêlos dando pulinhos ebicando o milho. 

Mas não é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que ospombos da Cinelândia devem ter visto coisas do arco da velha. Temos três locaisaltamente politizados: — o largo de São Francisco, o largo da Carioca e aCinelândia. Os dois primeiros ainda estão ressoantes de velhos comíciosespectrais. Em especial, o largo de São Francisco.

 Certamente, vocês já ouviram falar na "Primavera de sangue". Foi metáforae foi manchete. Mas vamos aos fatos. Há uns quarenta anos, ou cinqüenta, osestudantes resolveram fazer o enterro simbólico do então chefe de Polícia. Foiproibida a passeata ou por outra: — não foi proibida. O chefe de Políciaautorizou-a. E, então, os estudantes concentraram-se, exatamente, no largo deSão Francisco.

Lá estavam o caixão, as velas acesas, com os estudantes chorandofalsamente o pseudo-defunto. Quando, porém, saiu o enterro, três ou quatropoliciais, à paisana, infiltrados na massa, esfaquearam e mataram doisestudantes. Um dos repórteres presentes dispara para a redação. Lá chegandodeu à luz a metáfora: — "Primavera de sangue". O diretor do jornal, numarroubo perdulário, puxou uma cédula e a enfiou na mão do estilista. No diaseguinte, a manchete sangrava no alto da primeira página. Ametáfora quase pôsabaixo o governo. E, até hoje, há sempre um velho profissional, que se lembra da"Primavera de sangue".

 Também na Cinelândia houve memoráveis explosões cívicas. E os pombos delá, como uma alada platéia, a tudo assistiam, arrulhando os seus aplausos e assuas vaias. E, se um deles tivesse de redigir suas memórias, havia de concederum especial destaque ao comício da escola de belas-artes. Trata-se de umepisódio que, na época, encheu a cidade de um divertido horror. 

Eis o caso: — certo dia, os pombos da Cinelândia foram surpreendidos poruns trinta ou quarenta rapazes. Num golpe de mão, os jovens ocuparam asescadarias do Municipal. Os pombos imaginaram que a rapaziada ia falar doVietnã, o assunto da moda. Engano. Simplesmente, estavam ali para um comíciode um tipo jamais suspeitado. Ninguém xingou os Estados Unidos. O primeiroorador anunciou a morte da palavra. O segundo também anunciou a morte dapalavra. E assim o terceiro, o quarto, o quinto oradores. Como fizeram cincodiscursos e todos vociferando a mesma coisa, pode-se dizer que a palavramorreu cinco vezes. 

Os pombos se entreolhavam, num mudo escândalo desolado. Não entendiamnada. Mas nisto chegou o momento do milho. Dez minutos depois, voltam ospombos. Eis o que viram: — os rapazes estavam rasgando poemas de amor. Comtal gesto queriam demonstrar que a nossa época não comporta nem a palavra,nem o amor. Era meio estranho que latagões, aparentemente válidos, tivessem taldesgosto do amor e, por conseqüência, da mulher. Por fim, retiraram-se,gloriosamente, os rapazes. E, então, ruflando as asas e sacudindo as penas, ospombos voltaram para o soneto de Raimundo Correia.

  Passou. De vez em quando, porém, lembro-me do episódio e faço da "morteda palavra" um tema de meditação fúnebre. Até hoje, não sei se a palavra estámorta. Admito que se possa fazer um romance sem palavras, um conto sempalavras, um soneto sem palavras e até um recibo sem palavras. Admito que,futuramente, um novo Tolstoi venha a fazer uma outra Guerra e paz sem título ecom 1200 páginas em branco. Não consigo imaginar, porém, que certassituações vitais possam dispensar a palavra.

 Pode-se admitir um flerte mudo. Todavia, não se conhece um flerte eternoou, pelo menos, que tenha chegado às bodas de prata ou de ouro. Um flerte duraescassamente os quarenta minutos de um chá, de um desfile, jantar etc. etc. Emseguida, tem de entrar a palavra. Homem e mulher não podem ficareternamente olhando um para o outro. Conheci um paulista que era, por índole epor fatalidade geográfica, um introvertido. Falava pouquíssimo. Um dia,apaixonou-se. Não tirava a vista do ser amado. O pior é que a moça estavaachando o silêncio uma prova de alma profunda, inescrutável e fascinante. Atéque, um dia, o paulista resolve falar. Aproxima-se da bem-amada e sussurra-lhe:— "Rua tal, número tal, apartamento 1015, última porta à direita. Cinco da tarde".Para um paulista, ainda mais quatrocentão, era um esforço vocal insuportável. Eteve que se sentar, mais adiante, com as pernas bambas e a vista turva. 

Claro que esse mutismo atroz é, no amoroso, uma exceção escandalosa. Sejacomo for, mesmo o paulista citado teve que dizer um endereço e uma hora. Adama achou, com isso, que o ser amado era de uma prolixidade inefável.Normalmente, ninguém ama sem uma inestancável torrente verbal. Tive umcolega que dava para a namorada telefonemas de oito horas. Nem ele nem elafaziam uma pausa. Falavam ao mesmo tempo, e tanto a pequena como o rapaznão entendiam o que o outro dizia. Mas falei do paulista e agora me lembrei: —há pior, há pior. 

Quem me contou o episódio foi Marcos André. Vocês conhecem, decerto, oadmirável colunista. Eu o admiro por vários motivos e mais este: — MarcosAndré andou pela China, pelo Japão, por Formosa. Viu paisagens, flores, lagosjamais sonhados. Quando o leio lembro-me do nome azulado, lunar, de PierreLoti. E, como este, Marcos André conhece a China anterior a Mao Tsé-tung e,portanto, a China do ópio.

 Em Hong Kong, o colega foi testemunha da mais lindae silenciosa história de amor. Conta Marcos André que certo milionário brasileirofoi traído pela esposa. Quis gritar, mas a infiel disse-lhe sem medo: — "Eu nãoamo você, nem você a mim. Não temos nenhum amor a trair". O marido baixoua cabeça. Doeu-lhe, porém, o escândalo. Resolveu viajar para a China, certo deque a distância é o esquecimento. Primeiro, andou em Hong Kong. Um dia,apanhou o automóvel e correu como um louco. Foi parar quase na fronteira coma China. Desce e percorre, a pé, uma aldeia miserável. Viu, por toda a parte, asfaces escavadas da fome. Até que entra na primeira porta. 

Tinha sede e queria beber. Olhou aquela miséria abjeta. E, súbito, vê surgir,como num milagre, uma menina linda, linda. Aquela beleza absurda, no meio desordidez tamanha, parecia um delírio. O amor começou ali. Um amor que nãotinha fim, nem princípio, que começara muito antes e continuaria muito depois.Não houve uma palavra entre os dois, nunca. Um não conhecia a língua do outro.Mas, pouco a pouco, o brasileiro foi percebendo esta verdade: — são as palavrasque separam. Durou um ano o amor sem palavras. Os dois formavam ummaravilhoso ser único. Até que, de repente, o brasileiro teve que voltar para oBrasil. Foi também um adeus sem palavras. Quando embarcou, ele a viu numjunco que queria seguir o navio eternamente. Ele ficou muito tempo olhando.Depois não viu mais o junco. Amenina não voltou. Morreu só, tão só. Passou deum silêncio a outro silêncio mais profundo.

[22/9/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora