O ESQUECIDO

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Era um escritor católico. Há um mês, já com sessenta e poucosanos, caiu doente. Os sintomas eram vagos, incaracterísticos,triviais. Desde o primeiro momento, porém, foi varado por umacerteza inapelável: — "Vou morrer". Não teve medo da morte.Morreria mil vezes, se fosse o caso. Sua angústia era esta: — ser ounão ser esquecido.

 Piorava, de quinze em quinze minutos. E começou o desfile demédicos. Fez, à queima-roupa, a pergunta cruel: — "Doutor, quantotempo dura?". Como era um médico da família, o outro fingiu, comnobre descaro, um otimismo impossível. Riu: — "Mas que é isso?Você vai ficar bom". O doente odiou o médico e não perguntou maisnada. Olhava para a. mulher e pensava: — "Vai-me esquecer". Seriaesquecido pela mulher, filhos, amigos e vizinhos. Uma tarde,apanhou um jornal. Olhava na manchete sem ver; e imaginava que,no aniversário de sua morte, nenhum jornal pingaria uma linhasobre sua memória. 

Fui, um dia, visitá-lo. Disse-me, então, que descobrira umremédio contra a insônia (a doença tirara-lhe o sono). Durante amadrugada, enquanto os outros dormiam, distraía-se imaginando opróprio velório. Suspirou: — "Ah, o pior na capelinha não é acapelinha. Nem os círios elétricos". O pior, segundo ele, era umpequeno bar que lá funcionava. Aí estava a impiedade total. A mortetinha, por fundo, o alarido de xícaras e pires. A dois passos dosagrado, do eterno, parentes, amigos, curiosos pediam ou umguaraná ou um grapete, ou uma coca-cola, ou um sanduíche.  

Quando me despedi, já começava a dispnéia pré-agônica. Mas ainda me disse, sem rancor, apenas informativo: — "Você vai-meesquecer". Neguei, vermelhíssimo da própria mentira: —"Absolutamente. Você pensa que... Ora!". A dona da casa levou-meaté à porta. Passei por uma sala e eis o que vi: — dois filhos domoribundo jogando futebol de botão. E me ocorreu uma reflexão aum só tempo cruel e vil: — "Aqueles ali já esqueceram".

 Lá fora, tomei o primeiro táxi. Disse: — "Cidade". E que euforiaquando o carro pôs uma distância progressiva entre mim e a agonia,entre mim e a morte. No meio da viagem, ocorreu-me um verso nãosei de quem: — "Tão curto o amor e tão longo o esquecimento".Quem escreveu isso? Não sei, ou por outra: — agora me lembro. É deNeruda, o Neruda da primeira fase. Tão curto o amor e tão longo oesquecimento. É espantoso que, algum dia, Neruda tenha amado.

 Dois dias depois, ou no dia seguinte, um amigo comum bateu otelefone para mim: — "Já sabe? Fulano morreu". Lembrei-me deNeruda e passei de Neruda para a frívola memória dos homens. Omeu informante ainda acrescentou: — "Já está na capelinha". Nãome saía da cabeça o futebol de botão, enquanto um pai morria a doispassos. Horas depois, entrava eu na capelinha. 

s. Horas depois, entrava eu na capelinha.É um erro — era o que ia pensando —, é um erro asimultaneidade de velórios. De vez em quando, o parente, ou amigo,ou a esposa, vem espiar o velório vizinho. Ou se, por escrúpulo,pudor, não vem espiar, tem essa vontade. O escritor católico estavano andar de cima. Vou subindo (contando os degraus com umairremediável pusilanimidade cardíaca). 

Antes de ver o morto, uma lúgubre curiosidade levou-me aopequeno bar (e isso me daria, em seguida, um sentimento de culpapueril e terrível). O escritor não exagerara. Realmente, era exato oalarido de xícaras e pires. As pessoas interrompiam a dor e vinhamtomar um cafezinho, ou um refrigerante. Alguém pedia umsanduíche de salaminho. E, de fato, a morte tinha, por fundo, aquelepequeno bar fremente como uma colméia de xícaras e pires.

 E, de novo, eu pensava em Neruda. Queria-me parecer que oesquecimento começava antes da morte. Cada um de nós esquecetanto, tanto. Há os que são esquecidos antes da própria doença.Andam por aí, salubérrimos, e nós os esquecemos como se jamaistivessem existido. E, súbito, começo a pensar em Bob Kennedy. 

(Preciso datar esta minha experiência: — tudo aconteceu hádois dias.) Bob Kennedy era um morto tão recente e tão antigo. Nãose passou nem uma semana, não haveria tempo sequer para a missado sétimo dia. Não sei se os outros povos têm, como o nosso, essavocação para a missa do sétimo dia. E vejam vocês: — as primeiras24 ou, digamos, as primeiras 48 horas criaram entre nós e o crime,entre nós e o morto, toda uma distância infinita, milenar. Mais unsquinze dias, e os dois assassinatos parecerão simultâneos: — o deBob Kennedy e o de Pinheiro Machado. Com um mês, já nãosaberemos quem levou a punhalada e quem levou o tiro, se ogaúcho, se o americano.

 Mas onde percebi o esquecimento de Bob Kennedy foi,domingo, no Estádio Mario Filho. Iam jogar Vasco x Botafogo.Embora fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto, quase 200mil pessoas estavam ali. (E, novamente, me ocorre o versoparnasiano parecido com o do astronauta: — "A multidão é azul".Realmente, nenhum céu da Itália será mais azul do que a multidãode domingo.) Éramos 200 mil pessoas e ninguém, ali, exatamenteninguém, pensava em Bob Kennedy. Era quase o morto da véspera.A notícia do atentado feriu de espanto o Brasil inteiro. E a multidãode meio bilhão e quebrados esquecia o jovem até seu último vestígio. 

E o pior foi quando o locutor do Estádio Mario Filho anunciouo minuto de silêncio pela morte de Bob Kennedy. Ora, no exMaracanã vaia-se até minuto de silêncio. Pelo amor de Deus, nãofaçam outro minuto de silêncio num grande clássico. Olhei em torno.Nem todos se levantaram. Houve um muxoxo unânime, ou quase (eum muxoxo de 200 mil pessoas é ensurdecedor). E, súbito, o mártir passou a ser o importuno, o inconveniente, que vinha adiar por todoum minuto interminável o começo do jogo. Nunca houve um minutode silêncio tão ressoante de assovios, piadas e milhões de ruídosfantásticos e inumanos.  

Pior foi lá, nos Estados Unidos, na catedral onde o corpo ficouexposto. Aqui, no Estádio Mario Filho, estavam presentes só 180 milpessoas. Na catedral, 1 milhão de pessoas desfilaram diante docaixão. Eis o que eu queria notar: — o velório teria de ser um ato deamor, solitário, exclusivo, sagrado ato de amor. Que miserávelimpostura atribuir às 180 mil daqui e às 900 mil de lá qualquersentimento de amor. (O velório de 1 milhão de pessoas é gelado comoum deserto siberiano.) Foi apavorante a solidão de Bob Kennedy nojogo Vasco x Botafogo.

 [12/6/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora