A DOENÇA INFANTIL DO PALAVRÃO

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Que estaria fazendo eu, ontem, às três da madrugada? Sei queisso é intranscendente, irrelevante, mas vamos lá. Simplesmente, euestava adulando minha úlcera com leite gelado. (Minha úlcera lambeleite como uma gata.) Pacificada a dor, vim para a janela espiar anoite. E comecei a pensar no teatro brasileiro. 

(É triste ser inteligente com dor.) Escrevi, há dois ou três dias,que lavra, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão. Não hálembrança de outra época tão pornográfica. Dirá alguém que obrasileiro sempre foi um neto retardatário e ululante de Bocage. 

Isso é e não é verdade. De fato, o povo sempre teve a boca suja.O nosso Pedro I, segundo informam a história e a lenda, soltava, comlarga e cálida ênfase, alguns dos mais truculentos palavrões dalíngua. E, assim, através dos tempos, cada geração recebe dasanteriores um farto legado obsceno. 

(Claro que a linguagem das mulheres sempre foi muito maislimpa.) Eis o que eu queria dizer: — no passado, o palavrão eramuito mais solene, patético, vital. Bem me lembro de uma vizinhanossa, que perdeu a filhinha, de febre amarela. (Era ainda a cidadedos lampiões e da febre amarela.) 

Quando a menina morreu, e a mãe sentiu a morte, podia terrezado. Rezado, em pé, ereta, a fronte alçada. Não. Ela se esganiçouem palavrões hediondos, inclusive alguns que os homens, os latagõespresentes, não conheciam. Houve, junto à cama da agonia, umescândalo total. Mas logo todos perceberam que a dor pornográfica éainda mais terrível. 

Uns vinte anos depois, passo, com um amigo, pela praia de Ipanema. E, por um momento, ficamos, ali, feridos de espanto. Quedizer de um poente do Leblon? Um de nós poderia declamar aseguinte imagem de D'Annunzio: — "O crepúsculo rola em quedas desilêncio e de luz". Em vez disso, o meu amigo arrancou, das própriasentranhas, um palavrão deslumbrado. Aquele poente de folhinhacomo que exigia o uivo obsceno, não convencional.  

Disse obsceno e já retifico. Não houve obscenidade nenhuma.Houve, repito, uma unção e uma carga de espanto que a palavracomum não suportaria. Não sei se me entenderam. Mas o que euqueria dizer é que o palavrão não tinha nada de gratuito, deirresponsável. Nunca. E ainda outro exemplo: — fui ver um amigoque estava morre, não morre. Encontrei-o já com a dispnéia préagônica. Houve um momento em que a mulher curvou-se e lhe fez apergunta: — "Meu bem?". Sem abrir os olhos, ele soluçou umpalavrão e morreu. 

O homem era pornográfico para morrer. Ou ainda: — erapornográfico por ódio, medo, paixão. Havia sempre um sentimentoforte. Hoje não. O chamado nome feio deixou de ser feio. Esvaziou-seo palavrão de toda a transcendência, de todo o dramatismo. Ele jánão causa o velho impacto heróico. 

Realmente, é a doença infantil dos adultos. Ontem, contei, depassagem, as reações da platéia do Rei da vela. Um belo espetáculo eum elenco admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilíssimoesforço. No fim, o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíratodo o caldo). Um amigo, que foi comigo, dizia-me da peça: — "Nãotem estrutura". E, de fato, se lhe retirassem os palavrões enxertados,o Rei da vela não ficaria de pé cinco minutos. 

O que explica o êxito do espetáculo é, exatamente, o engenhodiabólico de José Celso. Não conversamos sobre a execução cênicado original. Mas quero crer que ele percebeu, em toda a sua forçaepidêmica e incontrolável, a doença infantil do palavrão. As falas deOswald de Andrade não chegam ao público ou, na melhor das hipóteses, são de uma eficácia mínima. Quem reinou, através dostrês atos, foi o palavrão. 

Claro que há, no Rei da vela, uma mensagem. Mensagem paraa qual a platéia é surda, cega e muda. Em dado momento, noterceiro ato, a peça emposta a voz e se torna gravíssima. O tédio dopúblico é então indescritível. Ah, por que fazer um Oswald deAndrade solene, encasacado como um mordomo de filme policialinglês? 

Já o rendimento plástico e auditivo do palavrão foi absoluto. Naminha frente estava um rapaz com a noiva. Passei duas horasseguindo as reações do casal. Diga-se de passagem que era a platéiamais antipolítica, mais antiideológica que já entrou no João Caetano.Volto ao rapaz (um latagão de vastas bochechas). A única coisa que ofascinava no espetáculo era a pornografia e toda a gesticulaçãocorrespondente.     

E sempre que explodia um palavrão, nada descreve e nada secompara à delícia auditiva do noivo. Ficava escarlate de prazer (e osoutros também). Lembro-me que, na minha peça, O beijo no asfalto,um velhinho trepou na cadeira e pôs-se a berrar: — "Indecentes!Imorais! Tarados!". Houve porém uma resistência solitária. Alguém,não identificado, estourou: — "Cala a boca, burro!". E o carequinha:— "Burro é a mão na cara!". 

O momento mais alto do Rei da vela foi quando a platéia, emsua unanimidade ululante, aplaudiu, de pé, o palavrão mais violentodos três atos. Ninguém fez cara feia; nenhuma senhora deu muxoxo;jamais um casal se retirou. No dia seguinte, encontro o doceEduardo Chermont de Brito. Conto-lhe toda a minha experiênciabrasileira do Rei da vela. Pergunto: — "Chermont, que fazem osnossos sociólogos? Que faz o padre Ávila que ainda não deu umaaula sobre a doença infantil do palavrão?". O Chermont suspira: —"É o Brasil, é o Brasil!". 

E há de ser também o Brasil o Roda-viva do Chico. Um dos Guinles foi lá, com a senhora, ver a peça. Queria o Chico terno,tímido, nostálgico. Pois bem: — e deu de cara com o truculento JoséCelso. Em Roda-viva há uma presença devoradora: — o José Celso. Ocasal Guinle saiu, no meio, como se fugisse do anti-Brasil. Mas é oBrasil, o novo Brasil com potencialidades imprevisíveis. 

O público só irá, daqui por diante, ao espetáculo pornográfico.A platéia exige as duas coisas: — o palavrão e o gesto que lhecorresponde. É como se a obscenidade de palco justificasse eabsolvesse a obscenidade do espectador. Se eu conhecesse o padreÁvila, ou outro sociólogo, ou quem sabe um psicanalista, ou aindaum pediatra, havia de perguntar-lhe: — há ou não, por todo o Brasil,a doença infantil do palavrão? 

[1/2/1968]  

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora