Faço anos dia 23 de agosto e confesso: — tenho, como o JoséLino Grünewald, a alma do aniversariante. Nos meus sete, oito anos,minha família nem sempre teve uma fatia de pão com um pouco demanteiga para lhe barrar por cima. Não importa. Mesmo sem umamísera cocada, sem uma mísera mãe-benta, eu celebrava, sozinho, afeliz data.
E, hoje, quero crer que o aniversário apagado e triste é maislindo. Também o José Lino Grünewald sabe fazer anos comoninguém, e repito: — é um aniversariante vocacional. Muito bem. Fizesta introdução para dizer o seguinte: — lembro-me, com implacávelnitidez, de cada dia 23 de agosto de minha vida.
Dirão vocês que dou muita importância a meu próprioaniversário. Exato, exato. Dou, sim, uma importância capital.Todavia, há um 23 de agosto que me doeu com uma pungência maisaguda. E isso por dois motivos: — primeiro, porque eu fazia anos; e,segundo, porque era véspera de um suicídio histórico. Vocês jáperceberam que falo de Getúlio.
Um suicida não se improvisa, assim como não se improvisa oartista, o poeta, o mágico, o mímico, o arquiteto. Portanto, teremosde antedatar a tragédia getuliana. Não sei se me entendem e tentareiexplicar. O suicídio é anterior a si mesmo. Começa muito antes edirei mesmo: — começa no berço. Não sei se cabe falar em gestonato. Ao vir ao mundo, o homem traz um repertório de atosfacultativos e de atos obrigatórios.
Quando Getúlio nasceu, o tiro no peito estava inserido entreseus gestos obrigatórios. Em 30, ao assumir o poder, já era o suicida. E, dia após dia, foi ainda e sempre o suicida. Até que, já aossetenta anos ou pouco mais, matou-se. Mas atirou no peito. Nãoestourou os miolos, como o faria um suicida banal. Quis preservar orosto, o último rosto, para a história, para a lenda. O povo quer olhara cara do líder morto.
Mas o que eu queria dizer é o seguinte: — Getúlio foi o últimogrande enterro do Brasil. Parou a cidade, parou o Brasil. Lembro-mede uma crioula, de gloriosas ventas raciais, que desmaiou junto aocaixão. Foi levada, arrastada por dois ou três. Que crioula, gordacomo a babá de ...E o vento levou, retinta como a babá de ...E o ventolevou, que crioula, repito, desmaiaria por um morto contemporâneo?
Somos 80 milhões. Examinemos, um por um, os 80 milhões.Façamos um censo de possíveis defuntos. E chegaremos à conclusãode que ninguém, no momento, justificaria um grande enterro. Porisso, falo na solidão do Brasil. Não há a perspectiva do "grandeenterro" porque não há "grande homem" para enterrar.
Parece enfático falar em "solidão do Brasil". Mas é a límpida einapelável verdade. E como é árida a época que não consegue dar umdefunto monumental! De repente, entendemos o mistério brasileiro.Somos uma rala, uma tênue orla litorânea. O que existe, fora de nós,é uma imensa sibéria florestal. E nunca o deserto siberiano daria umradiante cadáver.
qui, passo às nossas esquerdas. Sou uma flor de obsessão e,nos meus últimos escritos, tenho insistido no papel e destino dasesquerdas brasileiras. Elas não faziam nada, senão beber noAntonio's, dourar-se na praia e rabiscar nos suplementosdominicais. Até que uma data universal deu-lhes a oportunidadesonhada: — o 1º de maio.
As esquerdas se prepararam para entoar o que se chama, emópera, o dó de peito. No mesmo dia 1º de maio, o Estádio Mario Filhoapresentava um Flamengo x Vasco. O paralelo pode ser feito nosseguintes termos: — o jogo trouxe, em seu ventre, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E ao comício compareceram apenas osoradores. Minto. Em verdade, compareceram alguns familiares dosoradores.
E o comício foi desses fatos íntimos, confidencialíssimos. O piorvocês não sabem. O pior é que, em pleno e furioso ato cívico, dois outrês oradores ligaram o rádio de pilha e ficaram ouvindo o jogo.Travou-se, ali, um duelo inesperado entre as duas retóricas: — deum lado, a libertária; de outro lado, a futebolística. Enquanto em SãoCristóvão o orador fazia anti-imperialismo, no Mario Filho o locutortratava de botinadas.
No dia seguinte, encontro-me com um esquerdista feroz. Numacava depressão, gemeu: — "Como pode? Como pode?". Ele nãoentendia os quinze gatos pingados do comício e as 200 mil pessoasdo jogo. E, por uma boa meia hora, rosnou de impotência efrustração. Por fim, despediu-se. Mas estava de pé o problema, asaber: — por que o povo ignora as esquerdas?
Pelo simples motivo de que as esquerdas também ignoram opovo. Não se conhece, na Terra, caso mais prodigioso de alienação.Por outro lado, volto ao dado fúnebre, que me parece decisivo: —onde não há perspectiva de "grande enterro", também não é viável o"grande comício". E vêm as esquerdas e começam a falar do Vietnã,de Cuba, dos Estados Unidos. Se o problema é racismo, falam donorte-americano. E não há uma palavra, ou um palavrão, em favordo negro brasileiro. Simplesmente, o nosso negro não existe.
Poderão objetar que não há racismo em nosso país. Como nãohá, se nunca vimos um negro de casaca? Mas a fatal alienação dasesquerdas começa na própria língua. Já citei uma passeata recente.Vários cartazes davam morras ao imperialismo. Mas a palavraescrita, a piche, era "Muerte". Não morte, e sim "Muerte". Os gaiatosodiavam em castelhano, queriam matar em castelhano. Punhamsotaque até nos cartazes. Claro que ali se insinua a influênciacubana. Mas Cuba é uma Paquetá ou, se preferirem outra imagem, eu diria que é uma pulga e o Brasil um fabuloso elefante geográfico.A troco de que a pulga vai montar no elefante? Os gringos das nossasesquerdas representam o anti-Brasil, a negação do Brasil. Asesquerdas não entendem o povo, nem o povo as entende.
[10/5/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...