O defeito do jovem é o velho. Não sei se me entendem. É ovelho, ou pluralizando: — são os velhos que, no momento, em todaparte e em qualquer idioma, corrompem os jovens. Antigamente, avelhice era de uma cerimônia, de um pudor, de uma correçãoadmiráveis. Há todo um folclore sobre os nostálgicos, espectraisvelhinhos da porta da Colombo. Mas não fazem mal a ninguém.Apenas olham as meninas, e com que ternura infeliz e antiga.
Repito: — não falo dos velhinhos da porta da Colombo. Achoaté que o departamento de turismo devia preservá-los. Falo dos queerguem a cínica bandeira da imaturidade. Nem se pense que aidealização da imaturidade começa nos jornais, nas universidades,nas rádios, nas TVS, nos sermões. Não. Começa em casa.
O moço começa a ter razão na altura da primeira chupeta equase no berçário. Eu gostaria de saber qual teria sido o primeiropai, ou mãe, ou tia, ou avó, ou cunhada, que inaugurou o PoderJovem. O Poder Jovem é, portanto, anterior a si mesmo. Começa aexercitar a sua ferocidade muito antes, ainda na infância profunda.Há por aí toda uma geração de pequeninos possessos. Sãogarotinhos de quatro, cinco anos, de uma intensa malignidade. Umdia, a família achou que a criança está certa quando mete a mão nacara da mãe, do pai, tia ou avó.
Outro dia, eu próprio vi uma cena admirável. Uma garotinha decinco anos foi impedida de fazer não sei o quê. Como uma pequeninafera, investiu contra o pai, às caneladas. Desatinada, a mãe vaiapanhar a menina e a carrega no colo. E, então, acontece isto: — afilha mete-lhe a mão na cara. Sempre digo que precisamos tirar o som da bofetada. Uma bofetada muda seria menos ultrajante. Mas abofetada da garotinha estalou na cara materna. (Até hoje, nãoentendo como aquele pingo de gente foi capaz de bater com umaviolência adulta.)
Fiquei olhando. Mas o episódio familiar não parou aí. A mãe,agarrada à filhinha, soluçava: — "Coitadinha! Coitadinha!". Tias searremessavam. A menina passou de colo em colo. Numa das vezes,chutou o seio de uma tia; e meteu a mão na cara da seguinte; e naimediata, cuspiu na boca. Foi um horror.
Eis o que eu queria dizer: — a origem do Poder Jovem estánuma bofetada consentida, de filha em mãe, ou de filho em pai. Hoje,o adolescente leva uma sensação de onipotência. O homem madurotem, por vezes, um olhar estrábico de pavor. Sim, o homem madurotraz o medo no coração. Se alguém gritar — "Olha o rapa!" — umadona de casa ou pai de família sairá correndo e pulando os muros dacovardia.
O jovem, não e nunca. Vejam um rapaz chegando a qualquerlugar. Entra e olha. Luminoso descaro. Cada gesto forte extrovertetoda uma ilusão de onipotência. Sente-se nele uma coragemirresponsável e brutal. Nenhum medo, nenhuma dúvida, nenhumainterrogação. É um prodigioso ser, feito de certezas.
Mas eis o que importa repetir: — o jovem não tem culpanenhuma. Vítima de um processo de desumanização, ele é vítimatambém dos velhos. Numa das minhas confissões, referi um episódioque considero magistral. A coisa se passou com o padre Ávila. Certorapaz, se não me engano aluno da PUC, cometeu uma vileza atrozcom um amigo. O padre Ávila (espírito altamente compreensivo) foiinterpelá-lo. Perguntou-lhe: — "Você não acha isso umadeslealdade?". O adolescente pergunta: — "É preciso ser leal?". Obom sacerdote perdeu noites sem saber direito o que aquilosignificava. E nem lhe ocorreu que, por trás do moço, explicandoessa e outras deslealdades, estava um velho conhecido nosso: — o pulha
Ora, o ser humano não anda de quatro, nem está no bosqueurrando à lua. E por quê? Resposta: — porque somos responsáveis.É a responsabilidade o nosso mistério e a nossa salvação. Os velhoscomeçam por suprimir os limites morais da juventude. O nossopadre Ávila apreciou a canalhice do aluno ou conhecido, sei lá, comum espanto muito leve, quase imperceptível. Se fosse um quarentão,havia de se arremessar para a janela, aos berros de — "Aqui del-Rey!Aqui del-Rey!". E chamaria a radiopatrulha. Ou ele próprio, na baseda velha moral, daria ao pulha umas bengaladas saudabilíssimas.
Portanto, são os velhos, sacerdotes, psicólogos, professores,artistas, sociólogos que dão total cobertura à imaturidade. Os jovenssão o certo, o direito, o histórico, o infalível. Um amigo meu, e velhocomo eu, dizia-me: — "A juventude sabe mais do que nós". Outroexemplo: — o dr. Alceu. É um sábio católico. Não há dúvida.Ninguém, de boa-fé, poderá negar-lhe a enorme autoridade moral.
Quando o leio, fico imaginando: — "Se eu fosse jovem, depoisde ler isso, sairia por aí decapitando velhinhas como umRaskolnikov". Até hoje, não sei bem que idéia faz da juventude onosso Tristão de Athayde. Ou está esquecido de que o jovemparticipa da nossa miserável, infeliz e, tantas vezes, abjeta condiçãohumana? O jovem é, permita-me o mestre lembrar-lhe, o ser humanocom suas fragilidades, os seus méritos, as suas tentações e com ainevitável, obrigatória dimensão do canalha. O moço tem os defeitosde qualquer um e mais este: — a imaturidade. Eu sei que o dr. Alceuanda fazendo uma promoção da imaturidade como se esta fossesabonete ou um refrigerante. E o nosso Tristão, como o Carlinhos deOliveira, inverte os papéis: — a maturidade é que passa a ser umadeficiência humilhante.
Num dos últimos artigos, conta ele que esteve em Paris e foitestemunha auditiva e ocular da "popularidade mínima" de DeGaulle. Fala de "poucos aplausos" e "algumas vaias". Eu não entendo e repito: — não entendo. Ah, o bom Alceu, o ótimo, o excelente Alceu.Não deve acreditar na vaia. Aqui, no nosso estádio, vaia-se atéminuto de silêncio. Mas quererá ele insinuar que o povo francês temódio ao herói? Talvez. Se fosse Lavai, quem sabe se não seriacarregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado?
[3/6/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...