Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão semmistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu,no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como talera o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o maridoera o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares,os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamentecego para o óbvio ululante.
Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar ainfiel: — "Uma santa! Uma santa!". Mas o tempo passou. Hoje, dá-seo inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Massabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço,hora, dia etc. etc.
Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minhainfância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirandorútilas patadas: — "Eu sou um quadrúpede!". Nenhuma objeção. E,então, insistia, heróico: — "Sou um quadrúpede de 28 patas!". Nãoprecisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido,translúcido idiota.
E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa famíliatambém de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, erampiores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava.Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podiapensar. A vida política estava reservada aos "melhores". Só os"melhores", repito, só os "melhores" ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.
Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade.Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia eda própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quandocruzava com um dos "melhores", só faltava lamber-lhe as botas comouma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler,aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até aoMaria, a desgraçada.
Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Haviaplena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que sóos "melhores" podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foiassim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, umatelefonista aposentada me dizia: — "Eu não tenho o intelectual muitodesenvolvido". Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora!Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.
De repente, os idiotas descobriram que são em maior número.Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. Emais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos"melhores". Para um "gênio", 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhõesde cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico:— trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou umamultidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outrosidiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos,mugia, ali, uma massa de meio milhão.
Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria aaudiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cadaum de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequenoMaomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os "superiores".Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiotaindubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência,amantes, carros, jóias etc. etc.
Quanto aos "melhores", ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos,uma pose profética, só não previu a "invasão dos idiotas". E, de fato,eles explodem por toda parte: — são professores, sociólogos, poetas,magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, asartes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.
E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estãoapodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vãoruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamosampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problemareligioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquiaprecisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinzeminutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa,ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.
É o que está acontecendo. Nem se pense que a "invasão dosidiotas" só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira,cada um de nós podia resmungar: — "Subdesenvolvimento" — eestaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em quepese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecidocom um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam unsaqui, outros em Cingapura.
Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltarde Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 milanos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande vozcatólica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senãouma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios maishediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própriaIniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo coma inicial maiúscula).
Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista?Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. Demais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de SuaSantidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já,fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.
Cabe então a pergunta: — "O dr. Alceu pensa assim?". Não. Emoutra época, foi um dos "melhores". Mas agora é preciso adular osidiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se fingeimbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem debem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô eposam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outrolado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro ecuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de CarlosMachado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo osjornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc.etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, semacrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, osidiotas, os idiotas.
[19/8/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...