Vocês se lembram do pacto germânico-soviético. Uma manhã, o mundo vê,em todas as primeiras páginas, a cínica, a deslavada fotografia: — Stalinapertando a mão de Ribbentropp. Digo sempre que o riso pode comprometer aoinfinito. Aqui mesmo, contei o caso daquele ministro que não ria, para não searriscar. E, diante de tudo e de todos, tinha a mesma cara hirta como umamáscara. Mas Stalin e Ribbentropp riam, um para outro, e a risonha abjeçãoestarreceu o mundo.
Ou por outra: — não estarreceu. Em verdade, a manchete, a notícia e oclichê só espantaram uma meia dúzia. Os outros sentiram apenas o medo, oGrande Medo. Os exércitos alemães esperavam apenas o riso e o aperto de mão.Posso dizer que uma fotografia assassinou milhões. Em seguida, a Polônia foiestuprada. Era a nova Guerra Mundial. E morreram tantos que, no fim de certotempo, o horror deixou de ser horror. E o que havia, por toda a parte e em todosos idiomas, era o tédio da morte, e do sangue, e das mutilações. Diria tambémque os próprios sobreviventes tinham vergonha de estar vivos. A vida tornara-seindigna.
Não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que Stalin eHitler se juntaram contra a pessoa humana. Escrevi que a fotografia matou 100milhões (não sei se mais, não sei se menos). Mas deixemos de lado o horrornumérico. Tanto faz 1 ou 100 milhões de defuntos. Quando se assinou o pacto, eujá trabalhava em O Globo. Li o telegrama ainda na redação. Eis o que meocorreu, por outras palavras: — se é possível o pacto germânico-soviético, e se omundo o aceita, tudo é permitido. Durante dias e até meses, fui devorado poruma obsessão. Parecia-me absurdo que cada um de nós continuasse a fazer suavida, a escovar os dentes, a tomar café, a jogar nos cavalos etc. etc. O meusentimento era de que o pacto extinguira toda a vida moral.
E, no entanto, em todo o século, não há um ato tão inteligente, uma aliançatão lúcida, um acontecimento tão natural. Rússia e Alemanha tinham que seentender naquele momento. Tão parecidos Stalin e Hitler, tão gêmeos, tãoconstruídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler doque Stalin. Do mesmo modo, como são parecidos os radicais da esquerda e dadireita! Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não. Mil vezes não.Um canalha é exatamente igual a outro canalha. Pode parecer que Hitler e Stalinpassaram. Nenhuma ilusão mais idiota.
Napoleão, o Grande, só foi possível porque a Europa estava saturada depequeninos napoleões. E o mundo está cheio de Hitler e Stalin liliputianos. Notempo da guerra usava-se muito a expressão nazi-fascismo. Muito mais válidoseria dizer-se, ainda hoje, nazi-stalinismo. O pequenino Hitler, ou o pequeninoStalin, tem um íntimo tesouro de ódio. É como se tivéssemos de optar por um oupor outro.
Imaginem que falo pensando no Brasil. Vejamos os brasileiros. Aqui, oradical de esquerda não percebe, ou finge que não percebe, que é um stalinista.O radical, do outro lado, é nazista. A toda hora e em toda a parte,cumprimentamos um pequenino Stalin ou um pequenino Hitler. Instala-se o Brasildo ódio, ou, melhor dizendo, o antiBrasil. Direi mesmo que o brasileiro está emprocesso de desumanização. Imaginem cada um de nós transformado, derepente, na antipessoa. Conheço vários que perderam qualquer semelhança como ser humano.
Aqui abro um parêntese. Não sei se notaram que estou usando uma ênfase,um tom, uma veemência não comuns nesta coluna. Mas explico. O caso é que,ontem, o Kleber Santos bateu o telefone para mim. Dizia excitadíssimo: —"Imagine, Nelson, imagine!". Sinto a sua dispnéia emocional. E o Kleber, que éum dos nossos grandes diretores de teatro, continua, arquejando: — "Usaram oteu nome! Teu nome!". Excelente Kleber! Falava como se meu nome fosse umpatrimônio, algo de sagrado e intangível como um quepe ou uma espada daGuerra do Paraguai. E, então, mais calmo, contou-me tudo.
Alguém atirara, de um automóvel, na porta do Teatro Jovem, prospectosinsultantes. Eu não os li. Mas o meu amigo informa que os panfletos ameaçam eofendem os artistas. E lá está impresso o trecho de um artigo meu sobre d.Hélder. No seu fervor de amigo, o bom Kleber entende que eu devo repudiar acanalhice.
Aí está por que, desde o começo do presente artigo, sou o mais contrafeitodos colunistas. Se eu apoiasse qualquer ato de violência, da direita ou daesquerda, seria um canalha. Ao mesmo tempo, é meio humorística a situação deum escritor que, empostando a voz, limpando o pigarro e alçando a fronte,anuncia para o seu público: — "Meus senhores e minhas senhoras, saibam que eunão sou exatamente um canalha". Entendo, ao mesmo tempo, o empenho doKleber. Sua dispnéia, ao telefone, tinha algo de comovente. Não resisto a umamigo patético.
Bem. Vamos lá. Eu me consideraria o último dos infames se, algum dia, mesolidarizasse com a violência. Para mim, a liberdade está acima do pão (e, porisso, o pequenino Stalin ou o pequenino Hitler há de me considerar o mais bestialdos reacionários). D. Hélder e dr. Alceu são contra e afavor da violência. Assumem uma ou outra atitude, taticamente, segundo asconveniências de momento. Outro dia, li, no d. Hélder, no dr. Alceu e no padreComblin, que a guerrilha "não adianta". Não se trata de uma objeção moral,religiosa, humana, ou que outro nome tenha. Eles se opõem pela ineficácia. Só. Adedução é óbvia: — se a carnificina fosse proveitosa, devíamos sair por aíchupando as carótidas uns dos outros. Singular caridade de d. Hélder, do padreComblin e do dr. Alceu.
Também não aceito o padre de passeata. Quero que me entendam. O padrede passeata é, hoje, uma ordem tão definida, tão caracterizada como a dosbeneditinos, dos franciscanos, dos dominicanos e qualquer outra. E está a serviçodo ódio. Nunca ninguém verá um gesto meu, ou uma linha, a favor de qualquerterrorismo da esquerda ou da direita. Agora mesmo cometeu-se um crimecontra o teatro brasileiro. Espancou-se a platéia, espancou-se o elenco de Rodaviva. Despiram as atrizes. Uma delas estava grávida, e gritou a própria gravidez.Foi arrastada, pisada, chutada.
Começou um Brasil nazi-stalinista.
[24/7/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...