Vocês devem estar lembrados. Era um dia como outroqualquer, ou por outra, não era um dia como outro qualquer. Erepito: — era um dia dramatizado pela greve do rádio e da televisão.Dirá alguém que os jornais circulavam.
Mas o tempo da imprensa é um e outro o das câmaras emicrofones. Em jornal, o fato leva 24 horas para ser notícia. Ao passoque tanto o rádio como as TVS são fulminantes (mais uma vez, estouaqui proclamando o óbvio). Eis o que eu queria lembrar: — Kennedymorreu e custamos a saber. Entre nós e a tragédia houve a greve.Um tiro arrancou o queixo presidencial. E, aqui, ninguémdesconfiava de nada. Quando as extras saíram, Kennedy já estava nocaixão, Johnson tomara posse, Jacqueline improvisara o luto de suaviuvez atônita.
(Aliás, foi furada a greve do rádio e da televisão. Se não meengano, a Roquette Pinto estava no ar. Mas o rádio educativo faz suaaudição para surdos. Ninguém o ouve, ninguém, ou por outra: — sóuma meia dúzia o ouve. E foi essa meia dúzia que saiu contandopara os amigos, os familiares, os conhecidos; e assim, de boca emboca, a notícia tomou conta, paulatinamente, da cidade. Todavia osilêncio do rádio e da televisão parecia humilhar, parecia desfeitear acatástrofe.)
Estou falando de Kennedy e de sua morte porque meu filhoJoffre chegou de Nova York. Está aqui de passagem e voltará. E, nosEstados Unidos, ele vai de um assombro a outro assombro. Lá, viveele num mundo quase absurdo. Um dia, abre a televisão e vê umfilme sobre "as atrocidades norte-americanas". O mesmo filme passara, antes, normalmente, num gigantesco circuito de cinemas.
Só um país, no mundo, ousaria tamanha antipropaganda,tamanha antipromoção. E o Joffre, em conversas intermináveis, falade tudo que há de pueril, trágico, jamais concebido, na vidaamericana. Súbito, meu filho chega a Bob Kennedy. Nós oconhecemos fisicamente; nós o vimos, aqui, na praia, de calção,dourando-se ao sol como um camaleão (rimou com calção, edesculpem).
Mas o Bob que por aqui passou e viu muitos poentes de Leblonnada tem a ver com o Bob candidato. Naquele tempo, ele preservava,como um segredo, como um pudor, a sua intenção presidencial.Fazia de conta que o sonho do poder ainda não se instalara no seucoração. Mas, ao falar de Bob, não resisto à tentação de contar umepisódio brasileiro. Vamos lá.
Certa noite, o nosso Bob teve um encontro com vários patríciosnossos, inclusive o dr. Alceu. Eram intelectuais, estudantes, cadaqual fazendo a sua pose e cada qual dando seu recado. Porcoincidência, todos vendiam a mesma imagem do Brasil. Houve ummomento em que o Tristão empostou-se, ergueu o gesto e disse,textualmente, o seguinte: — "Posso assegurar-lhe que não havia omenor perigo comunista no Brasil!". Foi imensamente divertido o tominapelável de verdade eterna com que ' o mestre atirava na cara doilustre visitante tamanha barbaridade.
Os presentes, menos Bob Kennedy, balançaram a cabeça, ecom o maior descaro. Mas nada descreve a amarga perplexidade doamericano. Eis as perguntas que ele, espantadíssimo, teve o decorode não fazer: — "Como não há perigo comunista? Isto aqui não é umpaís subdesenvolvido? Não há fome? Existe ou não existe oNordeste? A tal mortalidade infantil é pura escroquerie?". Com aconivência e o descaro dos brasileiros presentes, o dr. Alceu estavasendo de uma monstruosa e consciente inveracidade. Digo"consciente" porque ele não ignora, decerto, a fome, o Nordeste, a mortalidade infantil etc. etc.
Volto aos Estados Unidos. Conta Joffre que Bob mudou, atéfisicamente. Há pouquíssimo tempo era, na televisão, um modesto,um humilde, um cerimonioso. Não olhava, cara a cara, os váriosmilhões de telespectadores. Baixava a cabeça. Tinha como que avergonha física do poder. E, súbito, o candidato secreto, inconfesso,começou a borbulhar, irresistivelmente. Bob Kennedy se deflagra.Seu gesto, sua inflexão, sua ênfase, sua ira, tudo, tudo promove,impõe, desfralda o candidato.
E, com isso, ficamos sabendo que a modéstia, a humildade, asuavidade anteriores eram uma pose. Aliás, pode-se datar a suacandidatura: — no dia, ou, melhor dizendo, no momento em queJohn Kennedy morreu, ele começou a ser candidato,automaticamente candidato. Não importa o pudor que, por muitotempo, disfarçou, negou o automatismo dessa candidatura.
Eu diria que, no seu caminho presidencial, só resta umadúvida. E, de fato, custa crer que existam, numa mesma família, doisKennedys. Seria o mesmo que pretender dois Napoleões. E, quandodois nomes coincidem, passamos de um Napoleão, o Grande, para oNapoleão III, o idiota. Há, todavia, uma hipótese para o nosso Bob: —de que o verdadeiro Kennedy não seja o morto, mas o sobrevivente.
Sempre me pareceu que John Kennedy era, como líder, umequívoco. Escrevi, aqui mesmo, que o verdadeiro líder é um canalha.E Kennedy era um pobre ser crispado de humanidade, igual a um denós, perplexo, frágil, dilacerado, menino, como um de nós. Meninosim, infinitamente menino. Kennedy tinha uma mulher bonita;amava e era amado. Não há Jacqueline na História e na Lenda deLenin, Stalin, Hitler. E a mulher bonita só tem sentido para o líderquando o trai. E mais: — o líder morre na hora certa, e não antes.John Kennedy morreu antes, e repito: — morreu antes da obra. UmNapoleão que morresse na tomada da Bastilha não seria Napoleão.Um Cristo morto aos três anos de idade, de coqueluche, já não seria Cristo. De mais a mais, o verdadeiro líder há de morrer com o rosto.Sim, a morte tem que preservar seu perfil para a moeda, a cédula, amedalha. O último rosto, o rosto do caixão, precisa estar intacto. Etiveram que fechar o caixão de Kennedy para esconder o queixoarrancado.
[25/3/1968]
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...