OS DOIS NAMORADOS

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Há coisas que um grã-fino só confessa num terreno baldio, àluz de archotes, e na presença apenas de uma cabra vadia. Lembrome de uma festa na casa não sei de quem (só sei que era grã-fino).Na altura das três da manhã, o dono da casa põe mais gelo nouísque e diz: — "Na minha casa só as criadas vêem televisão". Oscircunstantes concordaram em que a televisão é uma ignomínia. 

E, no entanto, vejam vocês: — o anfitrião estava bêbedo dacabeça aos sapatos. Mas o grã-fino preserva, ainda no pileque, umasérie de poses fundamentais. Uma delas é o falso desprezo pela TV eseus programas. Disse eu que o grã-fino só diz certas coisas numterreno baldio etc. etc. Já retifico. Nem no terreno baldio. Ele só diráque gosta de televisão ao médium, depois de morto.

 É, repito, uma pose. Na verdade, o meu anfitrião não perdiauma da Dercy, uma do Chacrinha, uma do Raul Longras. Quanto amim, sou franco: — não preciso do terreno baldio, nem do médium.O fato de ser apenas um pequeno-burguês, sem nenhum laivo degrã-finismo, dá-me descaro bastante para confessar, aos quatroventos: — vejo televisão e, pior, gosto de televisão. 

Dirá um intelectual ou um grã-fino: — "Mas, e o nível? Onível?". Ao que eu responderia, com a mais límpida e castaobjetividade, que o tal nível, que se atribui às nossas TVS, é muitorelativo. Acusamos o nível das emissoras e ninguém fala do nosso.Há uma reciprocidade de níveis. A televisão é assim porque otelespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas sejustificam e se absolvem. 

Muitos abominam o Chacrinha e adoram d. Hélder. E há coisas que d. Hélder faz e que o Chacrinha jamais ousou. Por exemplo: —um dia, abro O Jornal e vejo na seção "Eles disseram" algumasdeclarações do grande arcebispo. Dizia ele, em resumo, que eraperfeitamente legítima a "missa ao som de cuíca, tamborim, recoreco" etc. etc. Um católico e, ainda mais, um sacerdote propunha a"missa de gafieira". 

Portanto, é lícito dizer-se que certas posições de d. Hélder estãoabaixo do nível do Chacrinha. Mas falo, falo, e esqueci o meuassunto. Vou falar, hoje, do padre Ávila. (Se não me engano, é daPUC.) Mas, vejam vocês: — o nosso Ávila, além de ser padre, ésociólogo. Há um ano, um ano e pouco, estava eu assistindo a umprograma de TV. E eis que aparece quem? Justamente o padresociólogo.  

É um sociólogo que está radiante de o ser. E ele não diz um"oba" sem lhe pingar sociologia. No programa referido discorreu,exatamente, sobre o jovem. Que dizia o padre e que dizia o sociólogo?Não me lembro textualmente de suas palavras. Mas o padre Ávilacomeçou dizendo, se não me engano, que "os tempos estão duros".Até aí concordei. De fato, acontecem coisas, em nossa época, quedesafiam toda a nossa experiência e todo o nosso raciocínio. E, apropósito de o jovem, ele referiu um episódio muito curioso. Certorapaz cometeu, contra um amigo, um ato de extrema vileza. Poucodepois, o padre Ávila conversou com o culpado. Perguntou-lhe: —"Você não acha que foi uma deslealdade com o seu amigo?". O rapaz,mascando goma, saiu-se com esta: — "E é preciso ser leal?". 

O padre não se espantou. Um sociólogo não se espanta. Se lheservirem, no jantar, um ensopadinho de abóbora com ratazana, elenão concederá ao fato um único e reles ponto de exclamação. Poisbem. Até aquele momento não entendera o gesto de o jovem.Transmitiu ao telespectador a sua perplexidade. E nem oentrevistado, nem o público perceberam o óbvio ululante. Quem seescondia, ou por outra, quem não se escondia por trás do ato vil era um velho conhecido nosso — o pulha.

 Mas, pergunto: — por que o nosso Ávila não reconheceu avileza como tal? É sacerdote e, ao mesmo tempo, um sábio e, aomesmo tempo, um professor e, ao mesmo tempo, um sociólogo. Enão sabe que a infâmia é infâmia, que a indignidade é indignidade,que o cinismo é cinismo. Diante da evidência espetacular, faz-se decego. E o padre Ávila não será o único. Há milhares, há milhões deávilas. Por toda a parte, e a começar na família, só esbarramos e sótropeçamos em ávilas de ambos os sexos. Os pais são ávilas, as mãessão ávilas, e as tias, e as cunhadas. Todos são ávilas sem batina,sem sociologia etc. etc. Também nas escolas, nas universidades, nosescritórios, nas redações os ávilas são a maioria, quase aunanimidade.  

O dr. Alceu fala, sem rebuços, na razão da idade. É um ávila. Ecomo existem alceus e ávilas em todos os idiomas, ninguém julga ojovem, Não ocorre a ninguém que o jovem pode ser um santo, umherói, um justo e, também, um canalha. É um crime dar-lhe umarazão absoluta, isto é, dar razão a quem não a tem.

 E assim se criou uma figura sinistra, difusa, irresponsável, queninguém ousaria julgar. Realmente, o jovem está diante de nóssagrado, intangível. Um coroinha julga o papa. O padre de passeatacondena 2 mil anos de cristianismo. Todos os valores sãoquestionados, refutados. Só ao jovem tudo é permitido. Há coisas,porém, que justificam a nossa desesperada meditação. Quero falarde um fato concreto.

 Para evitar que se identifiquem as vítimas, não direi nemquando, nem onde ocorreu. Foi numa universidade que o leitor nãosaberá se daqui, de São Paulo, Brasília ou Belo Horizonte. Imaginemum casal de namorados de menos de vinte anos, estudantes ecatólicos. Um dia, o rapaz e a menina são cercados por um bando decolegas marxistas (digamos, marxistas de galinheiro). O que estesexigem dos namorados é um atestado de ideologia. 

Para não tomar o tempo do leitor, direi que o primeiro a seragredido, por uns oito ou dez, foi o rapaz. A namorada, na suadesesperada fragilidade, quis socorrê-lo. Foi logo agarrada,imobilizada. Apanhou na boca. E quase mataram o namorado, asocos, pontapés, chutes. Já sem sentidos, levou o último pé na cara.Mas não foi tudo. Lá estava o rapaz, quase morto. E, então, os outrosarrastaram a menina. Também a socos, a patadas. Ah, eu sei quetudo se publica. Mas o que fizeram com a adolescente não pode serimpresso em idioma nenhum. Muito tempo depois, alguém descobriuos namorados, ainda desmaiados. Uma ambulância, ou táxi, sei lá,os levou. O crime não mereceu nenhuma imprensa e explico: — osbandidos tinham a razão da idade. O jovem estupro, por ser jovem,está acima do bem e do mal. Mas há de chegar um dia em que ajuventude será julgada.

 [19/9/1968]

A Cabra VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora