Sou da imprensa anterior ao copy desk. Tinha treze anosquando me iniciei no jornal, como repórter de polícia. Na redação nãohavia nada da aridez atual e pelo contrário: — era uma cova dedelícias. O sujeito ganhava mal ou simplesmente não ganhava. Paracomer, dependia de um vale utópico de cinco ou dez mil-réis.Mas tinha a compensação da glória. Quem redigia umatropelamento julgava-se um estilista. E a própria vaidade oremunerava. Cada qual era um pavão enfático. Escrevia na véspera eno dia seguinte via-se impresso, sem o retoque de uma vírgula. Haviauma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado poruma emenda, jamais.Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente,explodiu o copy desk. Houve um impacto medonho. Qualquer um naredação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagradavaidade estilística. E o copy desk não respeitava ninguém. Se láaparecesse um Proust, seria reescrito do mesmo jeito. Sim, o copydesk instalou-se como a figura demoníaca da redação.Falei no demônio e pode parecer que foi o Príncipe das Trevasque criou a nova moda. Não, o abominável Pai da Mentira não é oautor do copy desk. Quem o lançou e promoveu foi Pompeu deSousa. Era ainda o Diário Carioca, do Senador, do Danton. Não queroser injusto, mesmo porque o Pompeu é meu amigo. Ele teve umpretexto, digamos assim, histórico, para tentar a inovação.Havia na imprensa uma massa de analfabetos. Saíam as coisasmais incríveis. Lembro-me de que alguém, num crime passional,terminou assim a matéria: — "E nem um goivinho ornava a cova dela". Dirão vocês que esse fecho de ouro é puramente folclórico. Nãosei e talvez. Mas saía coisa parecida. E o Pompeu trouxe para cá oque se fazia nos Estados Unidos — o copy desk.Começava a nova imprensa. Primeiro, foi só o Diário Carioca;pouco depois, os outros, por imitação, o acompanharam.Rapidamente, os nossos jornais foram atacados de uma doençagrave: — a objetividade. Daí para o "idiota da objetividade" seria umpasso. Certa vez, encontrei-me com o Moacir Werneck de Castro.Gosto muito dele e o saudei com a mais larga e cálida efusão. E oMoacir, com seu perfil de lord Byron, disse para mim, risonhamente:— "Eu sou um idiota da objetividade".Também Roberto Campos, mais tarde, em discurso, diria: —"Eu sou um idiota da objetividade". Na verdade, tanto Roberto comoMoacir são dois líricos. Eis o que eu queria dizer: — o idiota daobjetividade inunda as mesas de redação e seu autor foi, mais umavez, Pompeu de Sousa. Aliás, devo dizer que o copy desk e o idiota daobjetividade são gêmeos e um explica o outro.E toda a imprensa passou a usar a palavra "objetividade" comoum simples brinquedo auditivo. A crônica esportiva via times ejogadores "objetivos". Equipes e jogadores eram condenados por faltade objetividade. Um exemplo da nova linguagem foi o atentado deToneleros. Toda a nação tremeu. Era óbvio que o crime trazia, emseu ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Emmenos de 24 horas o Brasil se preparou para matar ou para morrer.E como noticiou o Diário Carioca o acontecimento? Era umacatástrofe. O jornal deu-lhe esse tom de catástrofe? Não e nunca. ODiário Carioca nada concedeu à emoção nem ao espanto. Podia terposto na manchete, e ao menos na manchete, um ponto deexclamação. Foi de uma casta, exemplar objetividade. Tom estrita esecamente informativo. Tratou o drama histórico como se fosse oatropelamento do Zezinho, ali da esquina.Era, repito, a implacável objetividade. E, depois, Getúlio deu um tiro no peito. Ali estava o Brasil, novamente, cara a cara com aguerra civil. E que fez o Diário Carioca?. A aragem da tragédia soprounas suas páginas? Jamais. No princípio do século, mataram o rei e opríncipe herdeiro de Portugal. (Segundo me diz o luso ÁlvaroNascimento, o rei tinha o olho perdida-mente azul.) Aqui, o nossoCorreio da Manhã abria cinco manchetes. Os tipos enormes eram umsoco visual. E rezava a quinta manchete: "HORRÍVEL EMOÇÃO!". Vejamvocês: — "HORRÍVEL EMOÇÃO!".O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo deGetúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisaspareciam não ter nenhuma conexão: — o fato e a sua cobertura.Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra.E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoçãopopular. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy.Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. Apartir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos. E quepobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, doJornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo eimpessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Umabala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto damanchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a tragédia,entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar nadesumanização da manchete.O Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, lembra-meaquela página célebre de ficção. Era uma lavadeira que se viu, derepente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada emquantidade. A lavadeira veio espiar a briga. Lá adiante, numa colina,viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e aliestava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio paradentro ensaboar a sua roupa suja. Eis o que eu queria dizer: — aprimeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação dalavadeira diante dos napoleões e das batalhas. E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo doleitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite aooutro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões decopy desks? Oitenta milhões de impotentes do sentimento. Ontem,falava eu do pânico de um médico famoso. Segundo o clínico, ajuventude está desinteressada do amor ou por outra: — esqueceantes de amar, sente tédio antes do desejo. Juventude copy desk,talvez.Dirá alguém que o jovem é capaz de um sentimento forte. Temvida ideológica, ódio político. Não sei se contei que vi, um dia, umrapaz dizer que dava um tiro no Roberto Campos. Mas o ódio políticonão é um sentimento, uma paixão, nem mesmo ódio. É uma pura,vil, obtusa palavra de ordem.
[22/2/1968]
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A Cabra Vadia
RandomNELSON RODRIGUES A CABRA VADIA Novas confissões Seleção: RUY CASTRO 1995 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Tupi, 522 01233-000 - São Paulo - SP Telefone: (011) 826-1822 Fax: (011) 826-5523 À memória de Mario Filh...