A ÚLTIMA ESTAÇÃO

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Flávio estava cansado. Muito cansado. Cansado da vida, do trabalho, da cidade que parecia sempre sugar mais e mais. Ele estava no limite, e sabia disso. O corpo pesava, o coração batia mais devagar, como se estivesse aceitando que o pior já tinha acontecido. E talvez tivesse mesmo. Estava em uma dessas tardes abafadas, em que o sol não fazia questão de se esconder, e a cidade parecia respirar com um som abafado, quase sufocante. Ele pegou o ônibus sem pensar, como sempre fazia agora, sem se importar com o destino. O ônibus estava lotado, claro, e ele mal conseguia se mover. As pessoas estavam todas ali, amontoadas, apinhadas umas contra as outras, um calor humano insuportável. Ele estava rodeado por corpos. E, de alguma forma, isso parecia a metáfora perfeita para sua vida: apertado, sem espaço para respirar, e, pior ainda, ele estava se afundando em meio àqueles corpos, como se a cidade tivesse uma maneira de engolir a alma de quem se deixasse, lentamente, ao longo do tempo. E ele estava se deixando.

Antes de tudo, ele se lembrava de quem era. Flávio era alguém que já foi feliz, tinha uma mulher chamada Angélica, uma mulher que parecia ter tudo o que ele queria na vida. Mas ela o trocou por aquele "criolo" do Rio, aquele cara com o sorriso largo e os olhos brilhando de uma alegria simples e insustentável. Ele, Flávio, com todos os seus planos, com todas as suas esperanças e promessas, agora não passava de um idiota solitário, um fantasma vagando pela cidade. Ele não entendia o que aconteceu. Não entendia por que ela, tão inteligente, tão... centrada, teria se perdido daquela maneira. Ele não conseguia acreditar que tinha sido trocado por alguém tão... simples. Por alguém de pele escura, com um sorriso que ele nunca soubera imitar. O quê ele tinha, afinal? Um trabalho sem graça, uma casa que estava prestes a ser tomada pelo banco e, agora, um advogado safado que não fazia mais do que sugar seu dinheiro e prometer o impossível. Era tudo uma merda. E o pior de tudo era que ele se sentia como um trapo velho, jogado de lado.

Ele sentiu um aperto no peito, mas não se importou. Ele estava cansado de se importar. Estava cansado de lutar contra a correnteza, de tentar convencer a si mesmo de que as coisas podiam melhorar. O ônibus apertou ainda mais contra o seu corpo, e ele sentiu o peso daquelas centenas de pessoas espremidas ao seu redor, como se cada uma delas fosse uma carga adicional, cada uma empurrando-o para baixo, mais fundo no abismo que ele sabia que já estava no fundo. Ele queria desistir. Mas o que mais ele teria, afinal? O que ele tinha agora, além de frustração, arrependimento e um buraco que se abria cada vez mais dentro de si? Ele não sabia. Não sabia mais nada. E naquele instante, uma ideia apareceu, como uma nuvem escura em meio ao céu cinzento da sua mente: macumba. Ele acreditava em macumba, agora. Estava claro que Angélica tinha feito algo, algo que explicasse por que ele foi trocado. Talvez ela tivesse se envolvido com aquele homem por influência de algum feitiço, algum trabalho sujo. Ele pensou na palavra, repetiu-a mentalmente. "Macumba", pensou. "Ela não faria isso por nada." Ele queria acreditar que ela ainda o amava, que havia algo ali para ele, algum vestígio do amor que um dia existiu. Mas, no fundo, ele sabia que isso era mentira. Ele estava apaixonado pela ideia de ser amado, de ser alguém que pudesse ter tudo o que desejava. Ela, provavelmente, nunca o amou de verdade.

Quando o ônibus finalmente parou no terminal, ele já estava tão bêbado que mal conseguia ficar de pé. O álcool, misturado ao calor e ao sufoco daquelas horas de viagem, parecia tê-lo deixado mais pesado ainda. Ele tentou se afastar da multidão, mas o cheiro de cigarro e suor, a fumaça de gente desesperada, a pressão do corpo alheio... Tudo isso invadiu seus sentidos. E então, alguém pisou no seu pé. Não foi nada demais, um acidente, apenas, mas naquele momento, aquilo foi o estopim.

Desculpa, caralho! — ele gritou, sem saber o que estava fazendo. A raiva explodiu nele como uma bomba. Não havia mais controle. A pressão do dia, da vida, das frustrações, tudo veio à tona de uma vez só.

Ele empurrou o sujeito na sua frente, um tipo de maconheiro com cara de quem não tem mais nada a perder. O cara estava com o cabelo todo bagunçado, os olhos semi-cerrados como se vivesse em outro mundo. O maconheiro olhou para ele com um desprezo absoluto, mas Flávio não estava em condições de se importar com a reação. Ele estava farto. Farto de tudo. Farto da cidade. Farto de ser um perdedor.

Ele desceu do ônibus rapidamente, se misturando à multidão, tentando fugir, tentar sair daquele lugar. Mas a sensação de ser observado, de estar sendo seguido, não o deixou em paz. Ele olhou para trás, e então percebeu o que não queria: o maconheiro estava ali, logo atrás, mais perto do que ele imaginava. Flávio tentou se afastar ainda mais, mas o homem o seguiu.

Toma aqui o que você merece, seu corno filho da puta! — o maconheiro gritou, e antes que Flávio pudesse sequer reagir, sentiu algo frio e afiado cortando suas costas.

A dor foi instantânea. Foi como se alguém tivesse retirado o ar dos seus pulmões, como se a vida estivesse indo embora com cada gota de sangue que agora escorria pela sua camisa. Flávio tentou gritar, mas a dor engasgou sua voz. Ele olhou para baixo, viu o punhal cravado em suas costas, e viu a luz fria do metal refletida nos seus olhos.

Corno. Ninguém me chama de corno e sai vivo.

Ele tentou pensar, mas as palavras se perderam. Ele se curvou, e a cidade ao redor continuou a girar, indiferente. O terminal, cheio de pessoas apressadas, não se importava com ele. Elas passavam por ele, evitando olhar, como se fosse apenas mais um indigente caído no chão. Elas não viam a morte se arrastando para ele. Elas não viam nada.

A dor foi pior do que qualquer coisa que ele já tinha experimentado. Mas, antes que a escuridão o engolisse por completo, algo dentro dele se acalmou. A raiva, a dor, a frustração... Tudo foi se acalmando, como se uma parte de si mesmo, aquela que ainda acreditava que havia algo de bom no mundo, tivesse morrido ali, no meio de tanta gente apressada, com seus fones de ouvido e suas cabeças baixas. Não houve redenção. Não houve perdão.

Flávio nunca soube o que aconteceu com o homem do punhal. Nunca soube o que aconteceu com a cidade, com a sua casa, com os bens que ele tinha perdido, com Angélica ou com qualquer coisa que tivesse sido sua. Porque naquele momento, enquanto o sangue se espalhava pelo concreto, ele simplesmente não importava mais.

A última coisa que Flávio viu foi a lua, lá fora, fria e distante. Ela não olhou para ele. Ela não se importava.

SOMBRAS DA NOITEOnde histórias criam vida. Descubra agora