Difuso

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Terceira Pessoa

Lydia respirou fundo e fechou os olhos pela milésima vez, enfiou as mãos ardentes no rosto e conteve um gemido. Ergueu o rosto para o boneco depois de alguns minutos no silêncio estressante, as veias corroendo-se de impaciência com a faca fincada na parede – acompanhada de outras cinco – enquanto o boneco almofadado permanecia intacto, pendurado.

Voltou-se para Hurley em um tom mudo de súplica, o estresse evidente em chamas nos olhos bonitos. O agente, sério, com as mãos enfiadas nos bolsos e um semblante imperturbável, orientou:

– Outra vez.

Martin segurou um revirar de olhos e bufou sozinha, mas o obedeceu.

– Eu deveria estar atirando lá fora. – Resmungou ela, caminhando a contragosto para a mesa ao lado e pescando uma nova lâmina. – Eu estaria progredindo em algo, ao menos.

– Você está errando, Martin. – Disse ele, quase divertido. – Isso já é um progresso.

– Hurley... – Virou-se para ele com a faca na mão. – Eu prefiro balas, está bem?

– Porque você tem boa pontaria, e essa é a razão pela qual eu quero você essa semana inteira aqui, com as lâminas, até se tornar eficiente com elas. Você precisa aprender de tudo.

– Eu sei... – Disse ela, e os olhos verdes abaixaram para a lâmina brilhante. Martin passou um dedo por cima do metal frio, estudando o contorno assassino da ponta acentuada. – Mas não acha que já estou frustrada o suficiente por hoje?

O agente continuou parado, sua opinião tão firme em seus olhos que quase pode intimida-la.

– Mãos firmes, ombros arqueados, e seu foco no rosto dele. – Instruiu, apontando o boneco na parede com o queixo. – E se dedique dessa vez, você está minada no fracasso, precisa diminuir seus erros até agora e focar no que realmente quer fazer.

Lydia não relutou contra as palavras, assentindo e lambendo a boca com alguma ansiedade. Voltou-se para a parede e esticou os músculos com um respirar lento, paciente, estudando a própria concentração.

Girou a lâmina nos dedos em um movimento lento – e ainda iniciante – e agarrou com força.

A lâmina atravessou o ar em giros acelerados e rompeu a silhueta do boneco no quadril, fincando na almofada. Martin relaxou o corpo rígido, sentindo os músculos empedrados ansiarem por alguma adrenalina. Espremeu os olhos para o boneco, procurando um novo local para preencher.

Pescou uma nova faca do coldre e a girou nos dedos, distraída consigo mesma. Um suspiro cansado escapou quando a mente – livre da concentração que o movimento exigia – tornou a atormentá-la com sentimentos adormecidos e espinhosos.

A ansiedade que ainda corria pelo corpo tornou a latejar nas têmporas ao recordar-se de Lorenzo, lembrando que logo estaria novamente em frente ao homem que poderia ajudá-la em sua missão pessoal de encontrar-se com Theo ou de simplesmente acrescentar algo aos dados escassos da CIA.

Para ela, às vezes, ver Theo ainda parecia uma ideia muito distante.

Ainda não sabia lidar com o vazio de afeto que havia a dominado nas últimas semanas, como as memórias com o loiro ainda a machucavam, ou como a incerteza sobre odiá-lo com tudo que era a assombrava como o inferno. Lembrar-se dele já não era tão doloroso quanto no início, mas de qualquer forma, as mãos de Theo, que um dia correram por sua pele, eram agora como um fantasma frio e presente.

Martin ainda se culpava por ter acreditado nele, por ter o sangue da família nas mãos, por não ter a chance que queria de confrontá-lo e encarar cada sentimento difuso amarrado ao peito. O caldeirão de emoções contra seus pés frios foram motivos suficientes para deixá-la inquieta o dia inteiro, pensando, esforçando-se para se distrair com o trabalho.

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