Chama

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Lydia Martin

Batuquei meus dedos em cima da mesa, envolvendo o copo de café quente com força. Meus olhos correram outra vez pela padaria barulhenta, caindo no atendente mal-humorado atrás do balcão. Respirei fundo e tentei relaxar contra a cadeira, embora meus sentidos apertados em alertas não cessassem.

Aquela fagulha de sentimento indistinto que retorcia dentro de mim era o que Hurley costumava chamar de instinto. Enquanto os minutos se arrastavam preguiçosamente pelas paredes beges, eu levei cada movimento do relógio em meu pulso estudando ao redor.

A extensão de cabides continha clientes de todas as idades e o lugar parecia acolhedor e calmo, recheado somente por risadas eclodindo e o tilintar de copos e bandejas. Apertei minhas pernas cruzadas e apoiei os antebraços na mesa, procurando por movimentações suspeitas, por qualquer indício suspeito, mas eu não enxerguei nada que pudesse me fazer passar uma mão pelo coldre em meus ombros e pescar uma faca.

Discrição, lembrei a mim mesma. Quando o sino tilintou na entrada do estabelecimento eu ergui meus olhos de onde estava, no canto, pegando o vislumbre de Mitch entrando e caminhando até o balcão. Ele lançou um olhar direto em mim, cavando meus pensamentos como um furacão saudoso.

Não assentiu, não sorriu, não fez nada que não fosse fingir que não me conhecia, como o indicado, mesmo quando eu podia sentir nossas pupilas se comunicando. Fui arrastada pelas sensações que esticaram meus pulmões, pensando em como as últimas semanas tinham se desenrolado entre nós.

Mitch e eu éramos como uma maldita chama. Estávamos queimando o tempo inteiro, independente de qual razão. Eu estava, na maioria do tempo, fervendo em todo o tipo de brasa possível que a luxúria e desejo podiam conceder. Mas, ainda assim, eu conseguia ouvir algum instinto protetor rugindo em meu peito, e nossa chama agora ardia por outra razão.

Ainda não havia encontrado coragem para questioná-lo sobre os documentos de Irene em sua gaveta. Eu sabia que estava sendo covarde e estúpida, e queria acreditar que ele me contaria sobre se eu o questionasse, o problema era que eu não podia lidar com a mera ideia de que Mitch poderia não me contar sobre.

Se ele estivesse mentindo para mim, mentindo para a CIA, eu não saberia como recolher os pedaços de meu coração outra vez. Raeken havia quebrado todos os meus resquícios de confiança e de alguma forma que eu ainda não entendia, Mitch estava me libertando de cada sentimento espinhoso que se instalou em meu peito desde que fui destruída a última vez.

Houve uma época em que eu entendia Mitch e Theo divididos por uma cortina, dentro de meu coração. Eu não acreditava que alguém pudesse atravessá-la e tomar o espaço um do outro.

Theo ainda estava comigo de sua maneira singular. Ele ainda assombrava minha consciência, ardia meus punhos em revolta, e eu estava cada vez mais adequada a odiá-lo.

Sem Henry Pierce. Meu doce e ilusório Henry estava morto e eu pisei em seu túmulo há muito tempo atrás.

Todos aqueles meses ao lado de Mitch puxaram de volta minha segurança e tantas outras emoções que eu jamais conseguira entender. O que eu sabia, verdadeiramente, era que Rapp havia solidificado ainda mais a cortina de veludo em meu peito, e seu lado dentro de mim era firme como uma rocha. Firme e limpo e doce. Eu estava apaixonada por ele. Tudo sobre ele era mais fácil e leal, enquanto pensar em Raeken tornava a reabrir aquele oco de rancor em meu estômago.

Mas, desde que meus olhos caíram naquelas malditas folhas, meu coração estava outra vez ameaçado. Eu não podia entender se estava sendo irracional, não conseguia enxergar a situação de outro ângulo simplesmente por quê não queria. Eu tinha medo de reviver meus pesadelos, de ser traída outra vez, principalmente pelo homem que me soprara nova vida e realidade. Uma nova esperança para meu fodido coração.

Crow's FlightOnde histórias criam vida. Descubra agora