Borrão de tinta

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Terceira Pessoa

Pela primeira vez desde que havia entrado no pequeno alojamento, Lydia ousou deitar na cama. Encarou o teto por horas e horas seguidas, permitindo que suas lembranças tomassem conta da cabeça. Cada momento ao lado de Henry, cada presente, cada sorriso que o homem já havia arrancado de sua mãe e irmã, agora eram como um borrão de tinta indecifrável.

Martin recordou-se de todas as vezes que aquelas mãos a tocaram, imaginando quando elas seguraram uma arma, uma faca, quando apertaram o pescoço de alguém... A palavra criminoso ainda a assombrava, e cada verdade que havia ouvido mais cedo murmurava dolorida em seus ouvidos.

Chorou baixo, quieta, invisível, abraçando um travesseiro macio. Nunca havia se sentido tão fraca e vulnerável antes.

Quando o jantar chegou, Lydia não se deu ao trabalho de levantar da cama. A mulher de cabelos dourados, que mais cedo havia a ajudado a tomar banho e se vestir, abandonou a bandeja em cima da mesa e se retirou em silêncio. Poucos minutos depois, duas batidas irromperam pela quietude do quarto.

Martin se agitou no colchão, erguendo a cabeça e encarando a entrada enquanto fungava. Imaginou um milhão de vezes se era Mitch e aquela incerteza a fez se erguer da cama às pressas e pedir para que a pessoa entrasse. Ela fungou, limpou lágrimas do rosto enquanto esperava sentada.

Porém, sua esperança morreu quando Sophie – que Lydia já sabia que era a antiga Amber – atravessou a porta. A mulher de tranças platinadas as mantinha em um coque no alto da cabeça, e Martin a analisou naquela postura centrada e tranquila. Ainda que já tivesse a visto naquele dia e descoberto a verdade, mais uma vez enxergar a amiga de meses antes como uma agente do Governo a causou a sensação de estranheza.

Lydia observou a agente White, tranquila, se direcionar para uma cadeira almofada que existia próxima da cama. Ela se sentou, os olhos verdes seguindo cada movimento com atenção.

– Como você está? – Sophie perguntou.

Martin deu de ombros, cabisbaixa. Seu nariz vermelho e os olhos inchados denunciavam o choro agressivo, o que fez a agente sentir o peito se apertar. Abalada, ela tentou confortar a ruiva após um suspiro cansado.

– Lydia... Eu sei que isso é difícil. – A voz baixa inundou-se de compaixão. – Foi para todos nós.

A ruiva abaixou os olhos, exausta da situação e de precisar revivê-la mais uma vez naquele dia.

– Eu não acredito que isso esteja acontecendo. – Ela negou com a cabeça, aflita, a voz apenas um fio dolorido.

Os olhos de Sophie apagaram.

– Eu sei. – Murmurou em resposta. – Quero que saiba que pode contar comigo. Eu nunca fingi como criei afeto por você.

Lydia encarou a mulher e apesar da sinceridade cravada no rosto bonito, algo nela se negou a acreditar. Ainda que soubesse que Mitch e ela deveriam agir de tal forma e que talvez também odiassem a ideia, Martin odiava precisar aceitar o fato. Raiva correu por suas veias, mas seu rosto permaneceu acuado conforme ela assentiu vagarosamente.

Sophie sorriu, segura, e pousou as mãos no colo enquanto se encostava no estofado macio. Seus pensamentos giraram ao lado de Lydia e, tentando fazê-la sentir-se um pouco melhor, tornou a falar:

– Mitch... – Os ouvidos de Lydia quase saltaram de curiosidade genuína. White, quase orgulhosa, deu um meio sorriso. – Ele odiou isso mais do que qualquer coisa, chegou inclusive a me confrontar e dizer que toda essa corporação era uma piada de mal gosto por pedir que a enganássemos.

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