Dor

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Lydia Martin

Ele estava há alguns passos de mim, em meu quarto. Três passos, talvez quatro...

Quieto. Habilidoso. Concentrado.

Eu estava tentando me focar na vistoria, mas ora ou outra meus olhos acabavam em cima dele e meu coração se partia por confusão e desapontamento quando percebia que ele não reparava em mim.

Talvez estivesse concentrado demais...

Boa parte de minha energia estava envolvida em nossa missão de revirar meus itens que eu havia trazido comigo de Nova Iorque desde que o tiroteio com Josh acontecera, meses atrás. Nós ainda não sabíamos pelo o que estávamos procurando, o que o protótipo podia ser, sequer sabíamos se eu poderia estar realmente certa em ter o palpite de que estava comigo.

A primeira ordem direta que recebemos de Irene foi clara: procurar essa merda, fosse o que fosse. Nós estávamos presos nisso há dois dias, discutindo e reprogramando os planos, pesquisando alguma solução mágica, tentando entender qual era a conexão do complexo de hotéis com os túneis que eu e Mitch encontramos. Todas as informações ainda eram confusas e dissipadas e minhas têmporas latejavam com a mera ideia de me enfiar em minha sala e pesquisar mais afundo sobre toda a história.

Eu tentei, mas eu descobri que meu corpo só estava programado para seguir ordens. Nada mais. Eu havia me tornado uma massa estúpida de apenas dor desde que vi Theo me dar as costas e sumir pelo beco.

Eu sabia que havia pisado em seu túmulo em meu peito porquê eu mesma me dei ao trabalho de escavá-lo, eu sabia que a ardência insuportável que tremia em minhas veias era ódio e ódio... tanto ódio... Ele tirou tudo de mim. Ele tirou meu chão, tirou minha alma, tirou minha família... por que alguma coisa dentro de mim ainda estava formigando em um sentimento que eu não conhecia?!

Eu me sentia completamente incapaz de amá-lo. O que um dia eu amei, independente de quem ele havia sido comigo, já não era sequer um terço do homem que eu precisei conversar dias atrás. Mesmo que no fundo seus olhos cinzas e brilhantes me parecessem sinceros ao menos por um único segundo, a forma como sua voz conseguia ser macia quando se esforçava para isso... tudo o que eu fazia era ignorar esses pedaços estúpidos de conclusões e os esmagava dentro de minha cabeça. O mero raciocínio exigia que eu respirasse fundo e me esforçasse para não cerrar as mãos em punho e acertá-las em algo. Eu ainda estava com raiva. Raiva e rancor, devorada por incerteza, consumida por luto e vingança...

Eu concluí rápido demais que meu encontro de horas com o saco de areia da academia da CIA havia sido ineficiente. Suspirei sozinha, jogando em minha cama um moletom preto que estava parado apenas existindo em minha mão pelos últimos vinte minutos. Que merda Theo poderia ter escondido em um moletom?

Encarei a pequena pilha de roupas no meu colchão. Elas me pareciam tão insignificantes que eu quase poderia rir.

Eu consegui me sentir ainda mais estúpida parada ali, cansada daquela vistoria desnecessária, do sentimento de que não podia fazer nada e mesmo se descobrisse o quê fazer, não saber se teria coragem. Ter olhado nos olhos de Raeken depois de tanto tempo me entorpeceu. Eu sentia minhas entranhas anestesiadas mesmo quando minhas emoções estavam roendo tudo por onde passavam. Não conseguia medir o quanto de suas palavras eram verdadeiras ou o quanto as minhas – em meio ao fingimento para enganá-lo – poderiam ser também fruto de uma sinceridade cega e adormecida.

Talvez, no fundo, essa fosse minha maior preocupação. Eu estava com medo de mim mesma, de minha cabeça, de meu maldito coração que mesmo em meio aos pedaços brilhantes e exclusivamente feitos por Theo tivesse de alguma forma ficado contente com nossa aproximação. Eu não sabia o que estava sentindo além de que o odiava e a conclusão de que essa certeza estava sendo confrontada por algo que eu não conhecia, me apavorava.

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