Tormento

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Terceira Pessoa

O chão se abriu aos pés de Mitch. O buraco fundo e gélido se concentrou especialmente em seu estômago. Ele trancou a respiração, as paredes descascadas ao redor de repente transformadas em linhas prolongadas de desfoque, como se ele estivesse se desprendendo do mundo.

O som da bala cortou o ar. Estridente. Letal. Traiçoeira.

Mitch piscou uma vez. Ele soprou o nome dela, mas sua língua não formulou as letras com força. Fora apenas um sussurro absorto em confusão e medo e aviso. Um aviso inútil.

Lydia olhou nos olhos dele. Não soube como encontrou coragem, mas o fez. Ela soube rápido demais que o som do choque do projétil deixando a pistola era seu lembrete de despedida, sua sentença que já havia sido formada a muito tempo. Com súbitas lágrimas de agonia nos olhos e os pulmões transformados em bolas de gude, ela sussurrou as três palavras que sempre saiam repletas de lealdade e desespero.

Sussurrou que o amava, porém, Lydia nunca soubera se ele a escutou.

(...)

Uma hora antes...

Os minutos passaram rápido apesar da forma lenta e agonizante que as cabeças de Mitch e Lydia trabalhavam. Antes que pudessem tomar uma decisão, enquanto ainda conversavam, o casal recebeu uma ligação de Allison. Ansiosos, aceitaram o pedido da agente morena e esperaram em um beco que encontraram perto do hotel onde supostamente Foster estava.

O prédio era velho e com uma pintura gasta nas paredes externas, além da ausência de iluminação. Visto de fora, as redondezas do móvel e as janelas eram todas escuras.

Mitch estava escorado na motocicleta parada, observando Lydia contar seus passos enquanto ia e voltava em um ciclo infinito, incapaz de manter-se quieta. Ela tentara escorar na parede e esperar, mas aquela tarefa se tornou impossível quando, de alguma forma, toda a agonia intrevada em Mitch e contida pareceu se transportar para ela.

Do contrário dele, Lydia não conseguia acorrentar suas emoções. Enquanto estava se mexendo e conversando e articulando não tinha muito tempo para pensar no que realmente estava acontecendo, porém, os minutos de silêncio que Allison concedera ao casal durante o tempo de espera desencadearam todo o holocausto pessoal da Martin.

Estava repartida em tantos sentimentos confusos que não tinha sequer coragem para estudá-los. A única coisa que Lydia conseguia fazer era sentir.

Raiva, medo, amor, preocupação, adrenalina... tudo o que podia fazer era esperar enquanto era eternamente consumida pelos sentimentos apertados em suas veias.

Há alguns passos, Mitch soltou um suspiro e massageou as têmporas. Esticou as pernas ao ficar de pé e passou a língua pela boca seca, o coração choramingando em uma saudade sem fundamento. Pensou no que dizer a Lydia, mesmo que não houvessem palavras em sua língua. Não sabia como se sentir. Tudo o que podia ter dito a ela, ele já havia tentado. Não conseguia agir como se sua mãe não estivesse prestes a morrer para salvar sua cabeça.

Por um lado, sentia-se uma criança carente e estúpida e ingênua. Nunca soubera de fato o quanto aquele seu lado poderia ser bom. Todavia, o adulto determinado e sanguinário que rugia em suas entranhas não conseguia ignorar seu desejo mais genuíno de sangue. Para Mitch, não importava qual de suas versões o levara até ali desde que cada uma delas fizesse parte daquela noite.

– Elas estão demorando. – Reclamou Lydia, a voz seca de agonia. Aproximou-se de Mitch e mesmo no escuro, seus olhos verdes enviaram uma eletricidade calorosa para dentro do homem.

O agente assentiu, mas não disse nada. Encarou o rosto ansioso de Lydia e teve a sensação de que unhas cravaram em sua garganta. Aquele foi o único momento – desde que haviam chegado ali – em que ela conseguiu se manter inativa. Ela cruzou os braços e respirou fundo, absorta nas engrenagens que se agitavam dentro da cabeça.

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