Vômito

54 4 0
                                    

Terceira Pessoa

Lydia o encarou.

Tentou entender se sua cabeça alucinava, se a súbita impotência em suas mãos era derivada de ilusões muito reais. Ela piscou. Uma, duas, três vezes. Engoliu uma pedra alojada na garganta, ofegou baixinho, desejando que a realidade atravessasse sua mente. Entretanto, tudo o que ela conseguia ver ainda parecia uma mera mentira.

Confusa, estudou o corpo no andar de cima. Ele ainda estava sorrindo, praticamente fundido na sombra. Se fosse biologicamente impossível, Lydia soube que algo dentro dela doeu muito mais. A frustração ardente em seu cérebro nublou sua visão.

Ela abaixou a cabeça com um arfar, piscando rasas lágrimas de desespero que se acumularam com urgência.

– O que está acontecendo? – Sussurrou para si mesma.

Lydia entendia que precisava raciocinar, que precisava resgar seus sentidos profissionais o quanto antes para que pudesse reagir, mas não sabia como parar de sucumbir em confusão. Quis que todas as respostas caíssem de uma vez sobre ela, mesmo quando reconhecia que provavelmente fosse ser sufocada pelo excesso de clareza. O que a confortava era que, de qualquer maneira, ela já estava sufocada pelo excesso de dúvidas.

Sequer reparou que suas mãos tinham vacilado e caído, apontando as pistolas para o chão. Martin estava no modo automático. Deveria estar em defesa, deveria estar pensando em qual era a probabilidade de conseguir ser bem sucedida em uma corrida até a porta. Deveria. Mas, ao invés disso, estava congelada em busca de respostas que ainda não tinham chegado. Mil e uma tempestades diferentes sobrevoavam a cabeça.

Enxergou a silhueta no andar de cima se mover. Fechou os olhos, as mãos enfraqueceram com o sugar de equívocos e as pistolas deslizaram. As armas caíram no chão com um baque. Ela engoliu outra vez, tentando se concentrar em segurar lágrimas, mas sem a força necessária para cogitar parar de chorar por completo.

Espiou o andar de cima outra vez, mas não havia mais ninguém lá. Procurou pelo homem, olhando ao redor, e encontrou pés descendo escadas que ela ainda não tinha reparado que existiam. Ela deu dois inúteis e impulsivos passos para trás, angustiada com o silêncio denso do ar.

Cruzou os olhos com os de Theo. Ele estava sério, as mãos unidas em frente ao corpo com familiaridade, os ombros erguidos e o rosto despreocupado. O adolescente que Lydia havia derrubado no chão, agora em pé, se colocou ao lado de Raeken sem grandes indícios de desconforto.

Passos leves alcançaram os ouvidos da agente.

Foster finalmente saiu do escuro, parando em pé ao lado de Theo.

Os lábios de Lydia tremeram. A única pergunta que conseguia se fazer dentro da própria cabeça era, incansavelmente: o que está acontecendo?

Não disse uma palavra sequer, até por que não sabia como fazer a língua funcionar mesmo se quisesse. Acreditava que pudesse estar, como um todo, comprometida em apenas dor e desordem.

Os olhos de Foster ainda pareciam calorosos como ela se lembrava, mas ele não tinha – nas mãos e rosto e pescoço descobertos – um arranhão sequer, muito menos os cortes fundos que Lydia havia presenciado na gravação do vídeo em seu celular.

Quando Donnavan percebeu o escrutínio confuso da mulher, ele respirou fundo, e ela não soube se estava cansado ou entediado. O homem uniu graciosamente as mãos atrás do corpo, parecendo ainda mais forte do que Lydia recordava-se que ele era. As roupas escuras – em especial o sobretudo de couro – ressaltavam seus brilhantes olhos verdes claro.

– Você deve estar se perguntando o que aconteceu. – Disse ele, sem um pingo de humor na voz.

Ele demonstrava seriedade com o momento, diferente de Theo ao seu lado que ainda parecia controlar algum sorriso debochado.

Crow's FlightOnde histórias criam vida. Descubra agora