49. Legado

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Preso embaixo da pontezinha de pedra, Ronan encontrou o que buscava: o caderno de Victor. Retirá-lo levou tempo. A cola que prendia o embrulho provou-se resistente, requerendo de Ronan uma misto de força e muita, mas muita paciência. Após meia hora ele esparramou os cotovelos no parapeito da ponte onde se declarou para Anna durante uma noite gélida, típica das redondezas de Rioalto. Cumprindo sua promessa feita a ela, leu cada anotação grafada no papel.

Vez ou outra ajustava o robe marrom que "surrupiou" de Victor, o falecido Sábio que aprendeu a admirar pelos inúmeros feitos narrados por Anna. Lembrar-se dela lhe trazias lágrimas de saudade, frustração e principalmente: ódio de si mesmo ao vê-la partir em seus baços.

Entre cada parágrafo lamentos surgiam, caiam e juntavam-se ao fluxo do córrego que seguia por baixo da ponte despreocupada com seus problemas. Voltou o olhar para o topo de uma pequena elevação ao noroeste, onde a árvore em que compartilhou agradáveis momentos com Anna permanecia, também desinteressada com os problemas e tristezas mundanos da humanidade.

Lampejos dos trechos lidos repassaram em sua mente, como o nome do primeiro cujas mãos rabiscaram aquele caderno: Marcos, outro Sábio da Ordem dos Magos. A chave para manipulação curativa não era de sua autoria, mas sim do falecido Mestre que o disciplinou nessa arte, mas o nome deste indivíduo ali não constava. Referiam-se a ele somente pelo título: Mestre.

Numa batida abafada o artefato foi fechado. Os dedos de Ronan afundaram alguns milímetros no couro da capa. Seus olhos fecharam e os músculos do rosto comprimiram-se com o esforço desprendido.

— Por que eu? Por que Anna? — Lançou sua insatisfação ao vazio no horizonte preenchido pelo verde do campo aberto, contornado pelos inúmeros pinheiros dos bosques distantes. — Sou apenas um conjurador medíocre, sem noção alguma do que fazer — completou num sussurrado ao vento.

Mas a ventania carregou suas palavras.

— A culpa não é sua. — Dario surgiu na estradinha de terra vinda da cabana. Caminhava devagar, levantando poeira a cada arrastar de botas.

— A pior parte... — Ronan suspirou quando ele chegou da ponte —... foi que eu não pude fazer nada.

— Não fique se culpando. — Dario recostou-se na mureta e atirou uma pedra que guardou no bolso, atingindo o córrego, levantando respingos que alvejaram o rosto e as vestes de Ronan, provocando um olhar sério, reprovador. Arqueando a sobrancelha, desculpou-se: — Foi mal.

— Tudo bem. Acho impressionante como você parece tranquilo após tudo que testemunhamos. — Mirou sua atenção para a árvore acima da elevação. — Talvez porque não foi a Nathalia quem partiu. — Quando voltou para Dario, ele o encarava com um olhar severo.

— Nunca mais repita uma coisa dessas. Eu posso não compartilhar do mesmo afeto que você tinha pela Anna, mas não quer dizer que não me importe. Ela era uma garota incrível, isso você sabe muito bem. Ela era dona de uma felicidade e bondade única, além de talentosa e muito, mas muito esforçada, mais do que eu, Nathalia, e talvez você. — A estoicidade de Ronan rompeu-se quando seus olhos brilharam ao mirar a correnteza lá embaixo. — Mas eu tenho sorte de ter você como amigo. Não conheço ninguém que me carregaria por quilômetros, para depois cuidar dos meus ferimentos por dois dias, antes e depois de buscar comida em uma floresta desconhecida.

— Você faria o mesmo — disse o encarando com olhos úmidos.

— Com orgulho.


RonanOnde histórias criam vida. Descubra agora