22. Manada de Cães (Parte IV)

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Em um quarto familiar, Anna Ambrósio despertou.

Aquelas paredes pintadas numa tonalidade creme encheram sua mente nublada de saudosas lembranças. Assim como a cama, seu braço encostava contra a parede, absorvendo um delicioso frescor que sumiu graças ao contato com a pele. Na frente da cama, mas apoiada na parede, uma estante de carvalho guardava seus romances favoritos, que costumava pegar da biblioteca particular dos Leonhart para ler antes de dormir.

Sentada na cadeira que arrastou da escrivaninha até a cama onde estava sua amiga, Nathalia vislumbrou a paisagem fora da janela enquanto segurava na mão esquerda dela. Tocada com a preocupação alheia, Anna puxou-a para si com a força que lhe restava. A puxada pegou Nathalia desprevenida. Durante milésimos que pareciam segundos, testemunhou os olhos arregalados dela se encontrarem com os seus. Por um tempo as duas se entreolharam, caladas, até...

— Manada de cães. — Nathalia sorriu. — Não consigo tirar isso da cabeça.

— Nat... do que você está falando?

O azul em seus olhos brilhou.

— Foi o que você disse quando eu te perguntei sobre o que tinha acontecido.

— Você sabe o que foi. Você é a única que sabe.

— É claro, afinal, cachorros com tromba de elefante não é algo que se vê neste continente, ou em qualquer outro, mas se eles de fato existirem eu doaria minha herança aos pobres só para vê-los. Quem sabe eu até faça uma doação aos Zeppelis.

Anna riu do absurdo, não sobre os cães com tromba, mas sobre ela prometer doar a fortuna aos menos afortunados. Foi então que sentiu a mão de Nathalia percorrer a sua, terminando em seu braço repleto de cortes e hematomas.

— É uma pena minha mãe estar fora, mas tivemos sorte da Lucia estar aqui, foi ela quem fez os curativos, enxaguou os ferimentos e até aplicou uma pomada que vai ajudar na recuperação.

Os olhos castanhos de Anna brilharam.

— Ela sempre foi uma santa. Assim que eu me recuperar irei agradecê-la pessoalmente.

— Ela vai adorar ver você de novo... depois de tanto tempo.

Ouvir aquilo a fez transbordar em nostalgia. Relembrou dos inúmeros fins de semanas e feriados que costumava passar ali. Quantas brincadeiras, refeições em família, travessuras, broncas e vasos quebrados elas não compartilharam nesta mansão.

— Nat...

— Anna, você não precisa se desculpar. Eu entendo que você queira manter alguma distância de mim, eu entendo. — Seus olhos foram tomados pela melancolia de constatar a realidade.

— Elas não são minhas amigas, não de verdade... Eu queria te deixar enciumada por um tempo — admitiu envergonhada.

— Você? Fazendo uma coisa dessas? Amiga, o seu disfarce de garota exemplar caiu por terra! — Seus lábios finos foram tomados por um sorriso de satisfação.

— Hoje, quando eu ia para casa depois da aula, o Ronan me contou sobre minhas "amigas". — Anna omitiu a parte de ter golpeado o coitado com uma cotovelada. — E... elas riram da minha situação. — O sorriso de antes foi desfeito, seu rosto inchado foi tomado por algumas lágrimas contidas. — E elas ainda fingiram se importar comigo quando voltei pra sala — terminou choramingando.

RonanOnde histórias criam vida. Descubra agora