Danielle
Duas horas atrás….
Era pra ter sido só uma marcação de palco. Um ensaio. Uma fatalidade fez com que se tornasse o fim do sonho de uma garota.
Quando vi ela cair daquela forma tão desastrada e os dois ossos da perna saltarem pra fora, foi como se essas pontas tivessem me rasgado. O desespero se instalou em mim. Levei as mãos à cabeça, e seguindo um instinto muito mais forte do que a vontade de não ver aquela imagem chocante, corri até ela.
Eu não podia ficar só olhando, tinha que fazer alguma coisa. Me abaixei junto a seu corpo cheio de espasmos, a garota gritava, quase perdendo o ar, com uma dor horrível nos ossos expostos.
A única coisa que pude fazer foi segurar a mão dela e olhá-la com compaixão.
Eu quis ficar sozinha, longe de todos. Precisava de algum jeito buscar motivação, não sabia de onde, para continuar.
Vitor Hugo tocou meu ombro, me virei para olhá-lo. Seu semblante era carinhoso e havia muita emoção em seus olhos, mas duvido que no estado de abalo emocional em que eu me encontrava, alguma coisa que ele dissesse pudesse me confortar.
Toquei seus lábios, andei como se ele não estivesse ali. Ainda bem que não me seguiu, me poupando o desgosto de pedir que me deixasse em paz.
Tirei meu ícone da Theotokos da mochila, me persignei com um sinal da cruz, fiz a oração que os ortodoxos fazem antes da execução de qualquer atividade.
Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito de teu Pai não-originado, Tu que disseste com teus Preciosíssimos lábios: Sem mim vós nada podeis. Ó Senhor, meu Senhor, tendo abraçado com fé as Tuas Palavras, prostro-me perante a Tua bondade; ajuda a pecadora que sou a, através de Ti, concluir este trabalho que vou iniciar. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Fiz novamente o sinal da cruz e uma metanoia, beijei o ícone, e não sei como, me arrastei até o corredor. Mesmo desestabilizada, mesmo sem ânimo algum, eu era bailarina. E uma bailarina nunca foge de um palco.
Por um dos vidros laterais da coxia, vi que uma tempestade caia lá fora. Não era pouca chuva. A copa de uma árvore balançava, os galhos balançavam como que numa coreografia ao vento. Não demorou muito, e um galho se quebrou.
Fiquei praticamente pelada na coxia. Numa apresentação de dança, não existem provadores, vestiários, para todos os dançarinos. Temos que nos trocar aonde dá, do jeito que dá. Eu sempre tinha o cuidado de manter esparadrapos nos mamilos e estar de suporte, o fio dental incômodo e invasivo. Mas nunca usava calcinha pra fazer aula.
Vesti meu figurino, um macacão marron claro, com uma sainha de um marrom mais escuro. Essa tonalidade mais escura também estava presente na altura dos ombros. Minha sapatilha era de meia ponta, combinando com a malha.
Me sentei num banquinho diante do espelho, para que Letícia confeccionasse em mim uma trança embutida. Ela também me maquiou.
Minha professora me olhou com preocupação, sem me dizer nada. Andei para a lateral do palco, onde começava a cortina.
A continuidade da competição naquela noite deixou de fazer sentido pra mim. Eu admirava pessoas com nervos de aço. Pessoas que não se abalavam com nada, nem com um acidente tão grave acometendo uma pessoa tão próxima à nós. A Miyuki não podia ser chamada necessariamente de amiga. Estudou conosco, tomou café da manhã na mesma rotisserie que nós, contou histórias. Meu Deus, ela tinha sonhos, e saber que eles estavam perdidos doía demais.
A Duda agia de uma maneira diferente da de todas nós. Mesmo depois de uma decepção, ela sempre se reinventava, a motivação dela era inabalável, e não por acaso era primeira bailarina da produtora.
Ela pisou no palco de forma decidida, altiva, deu saltos e giros que beiravam o absurdo de tão perfeitos e dois mortais seguidos que somente ginastas olímpicas são capazes de executar. O público gritou “oh”, bateu palmas, e era só o começo.
A bailarina de pele negra e olhos desafiadores rolou no chão, pondo-se em pé numa pose atrevida, e fechou sua apresentação com um espacate frontal e um dedo nos lábios. Essa pose final fazia parte da coreografia, e de forma inequívoca, era um pedido de silêncio a todos aqueles que ousaram duvidar que ela era a melhor.
— Foi lindo, Duda. Parabéns — eu a abracei, logo que ela voltou, sob os aplausos e gritos de bravo da platéia.
— Obrigada, Danny — ela sorriu.
Quando chegou minha vez de dançar, minhas emoções afloraram todas juntas. Desta vez nem a respiração de ioga adiantou. Meu corpo parecia pesar.

STAI LEGGENDO
Danielle
Storie d'amorePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...