Capítulo 37

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          Vítor Hugo 

      Uma parte de mim queria pôr todas as minhas coisas na mochila cargueira e voltar de ônibus para Jundiaí. Outra parte me mandava ficar e fazer o Curso de Verão da Promoarte, para ganhar mais técnica para a disputa do Prix de Lausanne.

      Duas semanas apenas… que pareciam uma eternidade.

      Eu estava cansado de tudo. Queria deixar o Brasil o quanto antes, mandar tudo à merda. Nada mais me prendia aqui, no sentido afetivo. Precisava de outros ares. Ver gente nova. Meus pais e amigos sempre estariam no meu coração, e por mais que a saudade fôsse doer no começo, era preciso.

      — Me empresta teu antitranspirante? — olhei com o canto do olho para um garoto de pele negra. Ele havia chegado de manhã, com bailarinos de outros estados, para participar do Curso de Verão.

      — Claro. Pode usar.

      Estendi meu frasco de Rexona a ele, que borrifou generosamente por todo o corpo.

      — Valeu, gato — ele agradeceu.

      — De nada, mas por favor, não me chame assim — deixei claro que não queria intimidade.

      O bailarino anuiu e, num instante, não estava mais do meu lado.

      Alguns daqueles rapazes tinham uma boa rodagem. Tinham feito aulas com professores cubanos, dançado em outros países. Outros eram bem inexperientes.

      Antes de vir para Ribeirão Preto, pesquisei alguns cursos de inglês on LINE, bons. Não se pode ir ao Reino Unido sem falar pelo menos o básico de inglês. O que se aprende nas escolas públicas é ridículo.

      Zapeando pela tela do celular, vi os principais pontos turísticos da capital inglesa, e fiquei fascinado. A Abadia de Westminster, o Big Ben. Os pubs. O metrô. Era bem louco me imaginar tirando selfies em frente a esses locais, e postando em stories do Instagram, com uma frase motivadora em baixo, do tipo nunca desista do seu sonho.

      Por mais que minha vida estivesse de cabeça pra baixo, por mais que eu estivesse vivendo uma grande angústia, eu tinha certeza que iria passar. Tinha que passar.

      Beto Corrêa não me ligou, nem me mandou mais nenhuma mensagem, porém eu sabia que não havia acabado. Homens como ele não sabiam quando parar, e nem aceitavam ser desafiados.

      Eu duvidava que ele fizesse qualquer coisa contra a Danny. Se tentasse, eu o mataria. 

      Saber que tudo se resolveria se eu honrasse o que eu tinha entre as pernas e fizesse a denúncia que a Danny tanto pedia (a ponto de me deixar irritado) me oprimia ainda mais. Ela não entendia que eu não podia. Para ela era fácil falar. Nasceu com físico de bailarina, era linda, tinha carisma e talento excepcionais. Estava bem encaminhada para um dia trabalhar numa companhia.

      Mas eu nasci numa família pobre. Mesmo eu tendo talento, só dançar bem era pouco pra eu alcançar meus objetivos. Eu me prostitui, eu sabia disso, mas foi por um bem maior. Eu queria poder viver de dança até envelhecer, e meu caso com o Beto foi, sim, uma ponte para Londres.

      Não. Eu não podia perder. Eu não aceitava perder.

      Me sentei no banco de madeira, calcei as meias e as sapatilhas brancas e me levantei para ir à sala de aula. Procurei esvaziar minha mente de preocupações e maus pensamentos, como bailarinos devem fazer antes de uma aula.

      Ao começar a subir o primeiro lance de escadas, vi no patamar de cima uma garota loura de collant e polaina conversando com um cara tão alto quanto ela. Eu reconheceria as formas andróginas do corpo daquela garota à quilômetros de distância. 

      Franzindo os sobrolhos, diminui o ritmo dos passos para, ao passar por eles, reparar em seus rostos. Danny entreabriu a boca, deixando à mostra o aparelho de dente de pedrinhas azuis, e fez uma cara de constrangimento. Odin arqueou com malícia uma das sobrancelhas e entortou o canto direito da boca, com uma expressão de desafio. Minha vontade era quebrá-lo.

      Danny sustentou seu olhar no meu enquanto caminhei ao largo dos dois. Não dei oi, não proferi nenhuma palavra. Simplesmente segui em frente e caminhei até encontrar a sala Alícia Alonso. Uma ideia excêntrica da diretora artística da Promoarte SP, que quis homenagear dançarinos famosos.

      — Oi — o Ítalo se aproximou de mim, beijando meu rosto. Cumprimentei as meninas dessa forma. Me lembrei de duas ou três de outros festivais que disputamos em outros palcos.

      Rostos diferentes.

      O pianista folheava tranquilamente uma pasta de partituras. Esporadicamente, seus olhos miravam em derredor, quando uma das bailarinas dava um gritinho após uma queda.

DanielleWhere stories live. Discover now