Danielle
Vítor Hugo tinha algo dentro de si que o afligia, e esse algo parecia ser tão íntimo, que achei melhor não perguntar. O sorriso dele não era o mesmo de alguns minutos atrás, natural.
Nada de mais. Todo mundo fica assim depois de uma apresentação. A gente fica achando que faltou alguma coisa, que podia ter feito mais.
Adorei a cara que ele fez quando me beijou, deve ter pensado que fiquei brava, mas não liguei, porque não era um beijo de verdade, do tipo que tem sentimento envolvido. Com certeza ele sabia fazer melhor.
Eu não era uma pessoa necessariamente alegre. Na maior parte do tempo preferia ficar sozinha ou com poucas pessoas. Mesmo com meu pai, com quem eu morava há quatro anos, nunca me senti à vontade para contar algumas coisas da minha vida. Principalmente coisas relacionadas à sexo.
Chorei muito quando tive minha primeira menstruação, porque um dos primeiros sintomas da leucemia foi meu nariz sangrando. O sangue me fazia ter lembranças tristes. Mas meu pai sabia que não era uma rescidiva do câncer, e sim, minha entrada na puberdade. Foi minha tia Tatiana, a pedido dele, quem me instruiu nesses assuntos de mulheres para os quais homens não tem nenhuma opinião inteligente.
Daniel e eu éramos pessoas quietas, sem muito assunto. Em outras palavras, duas pessoas ideais para conviver na mesma casa.
Um pai e uma filha contemplativos, de poucas palavras, mas muito amor, como dizia Padre Mikhail, meu starietz.
Se eu não me abria com meu pai, que era a pessoa mais próxima à mim, com o restante do mundo era pior. Duda e Nicole eram minhas amigas, mas não dá pra confiar totalmente em alguém. O amor das pessoas fere.
Era meu diário que ouvia todos os meus desabafos, porque um papel tem muito mais paciência para ouvir tudo o que a gente sente sem criticar, e a Katy tinha sido uma amiga fiel até então. Quando eu sentia falta da minha mãe, quando eu queria falar sobre sexo ou sobre um dos garotos do colégio, era com ela que eu me abria, e isso me fazia sentir bem.
Deve ser triste não confiar em ninguém e não ter amigos.
Eu não podia sair. Minha equipe precisava de mim, e mesmo que fôssemos rivais quando competíamos, éramos uma família. E mesmo que na maioria das vezes prestássemos atenção nos corpos das nossas colegas e pensássemos ah, como eu queria ter o arco de pé dessa vaca, estávamos ligadas pelos mesmos objetivos.
Os nomes continuaram a ser anunciados pelo locutor. Me encontrei no corredor com duas garotas que voltavam e uma delas chorava copiosamente, sendo consolada pela amiga. Por coincidência, a garota que chorava vestia um tutu de Paquita, diferente do meu em apenas alguns detalhes. Uma bailarina só chorava daquele jeito quando sua apresentação era um fracasso, e de qualquer forma, o desânimo dela dizia tudo.
— Levanta a cabeça, amiga. Você fez o melhor que pôde — a outra tentava animá-la. — Todo mundo reconheceu seu esforço e te aplaudiu.
— Eu ensaiei tanto... Era pra ter saído perfeito!
O choro convulsivo da moça de Paquita me sensibilizou. Mesmo não conhecendo nenhuma das duas, me aproximei delas, que me olharam com desconfiança, mas não me intimidei.
Dei um sorriso pra ela.
— Não posso fingir que não te vi chorar. Mas esqueça o que aconteceu lá no palco, é passado. Errar faz parte da dança, e a gente sempre pode melhorar. Não fique assim.
A garota enxugou as lágrimas com as costas da mão.
— Posso te dar um abraço? — perguntei.
Ela balançou a cabeça
positivamente.Meus braços passaram em volta dos ombros dela. Balancei seu corpo levemente. Em seguida, ela afastou seu corpo do meu e sorriu, quando toquei seu rosto.
— Ânimo, garota. Um dia de cada vez. Amanhã você vai fazer melhor.
— Obrigada!
As duas amigas trocaram olhares entre si, e me olharam com gratidão, antes de sumirem no fundo escuro do corredor.
Cheguei à entrada do palco, não tão aglomerado como eu pensava. Mas os rostos daqueles jovens me desestabilizaram. A Micaela me mediu da cabeça aos pés, como se eu pudesse contaminá-la com um vírus, e a Myuki e a Rafa sussurraram algo. Eu odiava quando me olhavam assim.
Me encolhi num canto, longe da cara de bunda delas. Cruzei os dedos sobre a cabeça, me alonguei um pouco.
Os alunos da Agatha Toller eram ótimos. O Léo dançou Carnaval em Veneza e ganhou a plateia.
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Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...