Danielle
Tentei ficar o mais distante que pude de Micaela e de suas amigas antes do início da aula de pontas. Por ser uma aula feminina, os garotos ficaram fora da sala, mas estávamos sendo observadas por eles através do vidro transparente.
Não só a Duda ou a Nicole, outras garotas também perguntaram se eu estava legal. Tirando o fato de eu estar me sentindo suja e vulgar, tudo ótimo. Só faltava mesmo eu ir fazer necessidades e achar escrito na porta do banheiro elogios, tipo: “Danny, sua vaca!”
Me esforcei para a professora Teodora não perceber qualquer indício de choro no meu rosto. Duda, que já a conhecia de muitas aulas de pontas que havia feito com ela, me preveniu que ela era um amorzinho, apesar de ela ter uma cara de séria, e olhava suas alunas diretamente nos olhos. Ela era muito jovem. Uma moça de estatura média, magra, de olhos verdes e traços indígenas. Vestia meia calça preta por cima do collant azul escuro e calçava sapatilhas de ponta.
Se as meninas pensavam que eu ficaria de cabeça baixa, que eu iria chorar feito criança na aula de pontas, só pra que sentissem pena de mim, é porque não me conheciam. Eu podia ser tudo. Calada, mas não uma fraca. Uma das minhas qualidades era me reinventar, e nada tiraria minha alegria de uma aula que eu adorava.
Me sentei no chão de linóleo, tirei minha ponta por um momento, só pra enrolar os dois primeiros dedos com esparadrapos novos. Apertei a raiz da unha de levinho, com o indicador, e doeu.
— Droga! — gemi.
Minhas unhas estavam muito castigadas. Encravadas, partidas ao meio e pretas. Uma delas estava quase se desgrudando.
Muita gente me perguntava, pessoas de fora do balé: “Danny, você não sente dor nos pés quando dança?” Eu respondia: “Claro que eu sinto, afinal, tô viva”. É um pouco complicado explicar para as pessoas que as dores são amigas das bailarinas. Quando a gente dança no palco, acaba esquecendo a dor; a gente se transporta. Eu podia estar sentindo meus dedos latejarem apertados contra o chão, mas meu amor pela dança era tão grande, que eu me entregava à ela e passava por cima de tudo, sorrindo e vivendo esse amor. Que pra mim, era o único que existia.
Fiz os retoques necessários nos dedos em estado mais crítico, botei a ponteira de silicone, calcei a sapatilha, e por fim, amarrei os laços de cetim, arrematando com um laço bonitinho.
Só para não perder o hábito, fiz um detiré, primeiro com a perna direita, depois com a esquerda, e caminhei até a barra na ponta dos pés, ficando atrás da Duda.
Micaela e Miyuki cochichavam alguma coisa, enquanto olhavam pra mim. Ainda bem que eu não era de guardar raiva de alguém.
— Já se aqueceram? Vamos começar a aula — disse Teodora, depois acoplar o pen drive no som. Ela trocou as pilhas no controle remoto, veio para o centro da sala.
— Elevés!
Nos viramos ao mesmo tempo de frente para a barra, com os pés em paralelo.
— Braços em bra bas. Sete! Oito!
A música começa a tocar. Teodora passa caminhando em paralelo às várias barras da sala, passando orientações às meninas, dando palmadas nos bumbuns das que estavam mal alinhadas, enquanto alternavámos subidas e descidas.
Os elevés săo movimentos parecidos com os de subir uma escada. O objetivo é forçar o colo de pé.
Ao fim do exercício, Teodora nos deixou de castigo no balance por longas duas contagens de oito tempos, nas pontas, que é uma verdadeira tortura e um teste de resistência. Meus tornozelos tremiam sob o peso do meu corpo, meus músculos pegavam fogo. Duas ou três garotas não aguentaram até o final da contagem.
— Você não contou nada pra gente— disse Duda, com cara fechada. Teodora corrigia a Rafa, numa das barras no centro da sala.
É mesmo, eu não tinha contado da minha transa com o Vítor Hugo. Tinha sido tão bom, e um momento tão nosso, que não vi porque mais gente deveria saber.
— Eu juro que ia contar, desculpe.
— Mas quem contou foi a Micaela.
— Não precisa lembrar.
— E foi bom?
— Foi ótimo.
Dei um sorriso, e ao olhar para o vidro, vi os meninos, com latas de refrigerante nas mãos, obviamente comentando entre si sobre as caretas de dor que fazíamos. Vítor Hugo estava entre Angel e Ítalo, o partner da Duda nas apresentações de duo. O aluno da Agatha estava de braços cruzados, atento. Sério.

KAMU SEDANG MEMBACA
Danielle
RomansaPara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...