Capítulo 66

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          Danielle

      A sapatilha de ponta não é só um calçado, mas uma parte do corpo de uma bailarina. Quando eu amarrava as fitas de cetim em volta dos meus tornozelos, todas as minhas células pulsavam e eu entrava em estado de plenitude. Eu me sentia capaz de tudo.

      Ninguém podia imaginar o que eu estava sentindo ao ver minhas sapatilhas destruídas, cortadas em vários pedaços. A pessoa que fez aquele maldade não só destruiu minha apresentação. Também matou uma parte de mim.

      — Meu Deus, Danny… — Nicole levou uma das mãos à boca e outra ao peito, chocada com o que via.

      Com o olhar perdido direcionado às pontas destruídas, meio que entrei em estado de anestesia. Minhas faculdades mentais entraram em colapso, eu não consegui dizer nada. Meus dedos passaram pelos cortes que pareciam ser de estilete.

      Andei em direção à porta em passos lentos, como um corpo sem alma. Lágrimas corriam pelo meu rosto.

      Por que haviam me sabotado? Por que alguém faria uma coisa tão horrível comigo?

      De qualquer forma, não importava mais. Já estava feito.

      — Danny, agora não dá mais pra dançar — Nicole disse com voz chorosa.

      Num instante o camarim se encheu de bailarinas. Elas reagiram da mesma forma que a Nicole, quase surtando. 

      — Meu, Deus! Cortaram as suas pontas! — a loura de mecha azul gritou.

      Sons parecidos com sussurros lamentos se instalaram na meus ouvidos como zumbidos de moscas incômodas. Eu continuava sem reação, nem sentia os abraços delas, nem discernia mais palavras de confortos.

      Por quê?

      — O que aconteceu aqui? — Carlos Amaral entrou intempestivamente no camarim. — Danielle, você tem só quatro minutos pra… — então, ele me viu segurando as sapatilhas que já não serviam pra mais nada. — Mas que porra! Quem fez isso?

      Ao fazer essa pergunta como um urro furioso, o coreógrafo olhou para cada uma das meninas. Mas é claro que ninguém iria assumir a culpa. Eu duvidava que alguma delas quisesse me prejudicar.

      — Sabotar uma colega é imperdoável nessa produtora. Se eu descobrir quem foi, vou banir do balé.

      A professora da Miyuki pôs a mão na boca, soltando um meu Deus bem baixinho. Tocou na gáspea do calçado, me dando um olhar terno.

      — Eu não tenho palavras, Danny… Não sei o que dizer.

      — Não diz nada — minha voz saiu por fim.

      — Danielle, você tem um par de reserva? — Carlos me segurou pelos ombros.

      As pontas que eu usei durante o Festival e o curso de verão também estavam em péssimo estado. Aquelas que eu segurava eram as únicas que eu tinha.

      — Não.

      Carlos Amaral fechou os olhos. Seu rosto passou da raiva para a desolação. Tristeza. 

      Todas as meninas caracterizadas como cisnes tinham rosto de choro. Até Alice e Micaela, normalmente frias, estavam afetadas, como que destruídas psicologicamente. Seus lábios tremiam. A loura de mecha azul tinha as palmas das mãos unidas diante da boca, totalmente sem reação.

      Vendo o desânimo das minhas colegas e sabendo que aquele espetáculo não era só meu, mas também delas, tentei buscar forças dentro de mim.

      Aquele não podia ser o fim. Eu não aceitava aquele desfecho.

      O espetáculo não podia acabar.

      — Vou dançar descalça — decidi.

      — Garota, você não pode — Alice me segurou pelo ombro.

      — Eu vou dançar descalça, mesmo que meus pés se quebrem, mesmo que seja meu último espetáculo — andei em direção à porta decidida.

      — Danielle — Carlos me fez parar —, você não pode. Você não tem uma sapatilha de ponta.

      — A sapatilha não seria nada se não fôsse eu para calçá-la — minha resposta firme fez o coreógrafo paralisar.

      O silêncio se instalou na sala. Ninguém se pronunciou, ninguém ousou me contrariar.

      Era um ato extremo ir descalça ao palco, com certeza. A chance de eu me machucar existia. E tanto fazia eu usar uma sapatilha de lona ou não. Os riscos eram os mesmos.

      Mas não era justo jogar de última hora a responsabilidade de dançar o papel de Cisne Branco para uma daquelas garotas, que não conheciam todos os passos.

DanielleOnde histórias criam vida. Descubra agora