Especial Danny e Duda

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          Duda

      O que você seria capaz de fazer pra alcançar seus objetivos? Quanto vale seu sonho?

      Para a primeira pergunta, minha resposta é: tudo. Para a segunda: não tem preço.

      Comecei a fazer balé numa idade relativamente tardia, aos dez anos; mas eu tinha um bom físico para a dança graças aos treinos de ginástica artística. Felizmente nasci com flexibilidade, com alongamento, e isso sempre fez diferença numa arte em que encostar a perna na orelha ou tocar sua xoxota no chão num espacate te define como uma boa bailarina. Minha mãe me levava de metrô até o centro de treinamento do Corinthians, que sempre foi meu time do coração.

      Um dos motivos que levou minha mãe a me colocar na ginástica ainda pequenininha foi a admiração que ela tinha por uma ginasta americana¹ que conquistou a medalha de ouro numa Olimpíada, e que como eu, era negra. Ela tinha derrotado uma russa, que chegou a esses jogos como favorita absoluta e voltou pra casa chorando. O feito dessa ginasta havia fortalecido na minha mãe a certeza de que talento não tem cor e que tudo é possível, basta sonhar, acreditar e trabalhar pra que tudo aconteça a seu tempo. 

      Saltar sobre a mesa, fazer acrobacias nas barras assimétricas, dar saltos mortais na trave e no solo, pra mim, não eram meros exercícios. Eram desafios. Eram o que me davam motivação para vencer meus limites. Os exercícios de solo, em particular, eram os meus preferidos, porque além da parte acrobática, envolviam dança. E eu amava dançar.

      Quando eu soube que o velho estúdio de dança chamado Pas de Quatre Stude de Dance iria reabrir e que a professora fora colega da princesa Françoise, eu cometi pela primeira vez um ato de rebeldia, que foi faltar ao treino da ginástica pra ir até Perdizes com minha amiga e também colega na ginástica, Jordana, assistir à uma aula experimental. Nossas mães nos levaram, após agendarem a aula.

      O estúdio era encantador. Tinha duas salas com piso flutuante, paredes com espelhos, quadros de bailarinos, além de um bookafe que servia um sanduíche de atum delicioso.

      Jordan usou um collant preto próprio de dança clássica, enquanto que eu usei um da ginástica, de manga comprida com detalhes néon, que logo chamou a atenção das meninas. Logo na minha estreia no balé me destaquei.

      Das bailarinas que estudavam lá, Alice era a mais cocô. Olhava pra gente com o nariz empinado e se achava a melhor. Não gostei dela logo de cara, porque dizia coisas bem maldosas e mexia no cabelo das meninas, além de pôr defeito em tudo. Ela se sentia a dona do estúdio. Mas eu não ia deixar que uma garota judia mimada e esnobe pisasse em mim.

      Não tive muita dificuldade na minha primeira aula por causa da minha formação como ginasta olímpica e terminei a aula sem derramar um pingo de suor.

       Lembro que a Letícia chamou minha mãe em seu escritório, a fez se sentar na cadeira e perguntou se eu já havia feito balé antes. Eu ficava olhando para os quadros das bailarinas na sala da professora, achando-as lindas. Elas pareciam fadas, princesas e anjos, se equilibrando nas pontas dos pés, e eu tive certeza de que não era ginástica que eu queria fazer. Queria fazer balé.

      — Dona Maria Rita — Letícia dizia —, a Duda tem todas as condições para ser uma grande bailarina no futuro. Tem flexibilidade, musicalidade e expressão artística. Gostaria muito de tê-la como minha aluna.

      Mamãe e eu trocamos um olhar alegre e sorrimos uma para a outra. Eu me senti feliz e envaidecida por ser elogiada por uma bailarina que integrou o elenco de uma companhia alemã, e por mim, entraria para a escola naquele dia mesmo.

      Mas o valor da mensalidade derrubou minha mãe e eu das alturas, foi como se o chão tivesse rachado sob meus pés e um nó se formou na minha garganta quando me convenci que a dança estava fora do meu alcance.

      — Nós não temos dinheiro — mamãe lamentou. — Eu estou desempregada há quatro meses e meu marido, que é policial, não pode dispôr desse valor para pagar a mensalidade. E eu tenho um filho mais velho com paralisia cerebral, que vive numa cadeira de rodas, e precisamos gastar com remédios.

      — Eu entendo, Dona Maria Rita — Letícia sorriu com desapontamento. — Mas queria que a senhora entendesse que balé é uma arte cara. A mensalidade é só uma ponta de iceberg. Collants, sapatilhas, figurinos, viagens e taxas de inscrição para festivais, cursos de aperfeiçoamento da Promoarte, tudo isso é caro. 

      — Desculpe, professora Letícia. Nós não temos condições — então, minha mãe me pegou pela mão e levantou-se. — Vamos, Duda.

      Me levantei triste e de cabeça baixa.

      — Obrigada pela aula, tia Letícia. Desculpe eu não poder ser sua aluna — agradeci.

      Letícia beijou minha testa ao se abaixar e nos acompanhou até a saída do estúdio. Enquanto saía, olhei pelo vidro transparente a Alice, a Jordana e outras meninas de quem eu ainda não havia decorado os nomes saltando e girando pirouettes, e uma sensação de tristeza me invadiu. Eu queria estar ali com elas. Dançar todos os dias ali. Eu queria me sentir um cisne ao dançar, me alongar na barra.

DanielleOnde histórias criam vida. Descubra agora