Danielle
Meu pai entrou na sala e o toque da mão do Vítor Hugo no meu rosto ficou só na intenção mesmo.
Por mais que eu dissesse a mim mesma que não dava mais, que não tinhamos como dar certo por causa de tanta coisa, o magnetismo que me atraía ele era forte demais para eu negar que queria beijá-lo, e isso me deixava desestruturada.
Eu odiava me sentir sem equilíbrio. Não era pra eu estar brava com ele?
Me distanciei do bailarino, indo para o canto oposto da sala, perto das bailarinas negras (e maravilhosas) do Ballet Imperial de Petrópolis. Ajeitei meu collant por trás (não usar calcinha tem suas desvantagens), respirei buscando concentração para um écarte devant.
Faltava alguns minutos para a aula, cinco, pra ser exata. Meus músculos puxavam por causa do treino super rigoroso do meu professor particular, vulgo papai. Um pressentimento bem fundado me dizia que ainda tinha mais.
Meu pai e eu trocamos um sorriso quando nossos olhares se encontraram. Acho que ele não percebeu a tentativa do Vítor Hugo. Porém, eu tinha quase certeza que ele percebeu minhas bochechas vermelhas.
— Frente barra! Aquecimento! — ele anunciou com autoridade.
Manuela Almeida e Pedro Botelho são dois dos professores mais rigorosos e perfeccionistas em atividade. Mas Daniel Răducanu é o meu pai, eu o conhecia bem pra saber que uma aula com ele é garantia de muitas dores como efeito colateral dos possíveis balances e coupés na ponta.
Vai ser legal ver a Micaela fazendo cara de dor depois de vinte minutos de aula, um pensamento sádico me ocorreu.
A morena de olhos verdes tinha entrado atrás do meu pai. Diferente dos outros dias, os olhos dela tinham um tipo de aflição. Era como se tivesse chorado. E mesmo não sendo da minha conta, uma parte de mim ficou preocupada com ela. Eu não tinha motivos pra ter raiva de alguém.
— Sete! Oito! — meu pai estalou os dedos.
Os dedos do pianista correram pelas teclas em preto e branco do piano cor marfim. De olhos fechados, girei a cabeça duas vezes para a direita e duas para a esquerda, obedecendo uma contagem de oito tempos. A música era tão suave que acalmava a alma.
Esse aquecimento é padrão, muitas escolas a utilizam. O objetivo é acordar os músculos aos poucos, preparando-o para a rotina de barra.
Levantei os braços alternadamente, fazendo uma torção de tronco com as pernas em paralelo voltadas para a parede, enquanto minha mão se estende em direção, adivinhe… ao complicado Vítor Hugo.
Nossa troca de olhares foi instintiva, o que me fez desconcentrar. Me perdi no tempo da música, me perdendo dois tempos na barra enquanto todo mundo punha a perna esticada na mesma e fazia cambré.
Senti dois dedos tocando meus ombros e um arrepio percorrer minha espinha.
— Não tensiona esse ombro. Se concentra, Danielle.
A voz dele quase ao pé do meu ouvido faz meu corpo tremer. Chegava a ser engraçada nossa postura em sala de aula. Puramente profissional. Nunca nos chamamos de pai e filha.
Era bom e ruim, ao mesmo tempo.
O “professor” fez sinal para a música parar. Em silêncio, olhou para cada um dos alunos, sem piscar ou mexer os lábios.
Era duro admitir que meu pai chamava a atenção do público feminino, eu sentia ciúme quando as meninas suspiravam por ele. Ele e o Antony estavam juntos há um bom tempo e tinham planos de se casar logo. Não foi fácil pra mim aceitar o relacionamento dos dois. Só aprovei o namoro deles quando vi que as intenções do halterofilista barbudo com cara de mau eram as melhores possíveis.
Nicole e Duda abafavam um risinho. Muito engraçado.
Ignorando os olhares maliciosos das garotas, Daniel caminhou ao largo das três barras embutidas nas paredes, esquadrinhando as pernas dos alunos.
— Angel e Ulísses, troquem de lugar com a Fabi e a Renata.
Os quatro se movimentaram.
A barra em que as solistas regionais estavam tinham mais espaço para as pernas compridas dos rapazes, justificando a ordem dada.
— Danielle. Troque de lugar com a Flávia.
Oi? A Flávia, a bailarina de lindos traços indígenas, estava à frente do Vítor Hugo.
Só pode ser brincadeira, né?

YOU ARE READING
Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...