Capítulo 26

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          Danielle

      Quando meu pai finalmente me deixou tirar as caneleiras de 4 kg, depois de quase uma hora de aula de barra a tèrre, minha malha estava ensopada de suor, e meu corpo, salgado e fedido.

      O odor era o de menos. Bailarinas não são necessariamente as mulheres mais cheirosas do mundo, não é? Todos os meus músculos pareciam ter nós e eu estava sofrendo com câimbras. Para fechar a manhã de tortura, Daniel Răducanu me fez executar  duzentas loucas abdominais. Tinha como não achá-lo adorável?

      Me levantei do chão toda trôpega, cambaleante. Cada passo que eu dava pelo quarto vinha seguido de uma careta de dor. Pior que amanhã teria mais. Mas só amanhã.

      — Acho que a Rosário preparou o café da manhã — meu pai disse com voz tranquila.

      Rosário era o nome da filha do dono do hostel. Era uma moça loura, de olhos negros, covinhas no rosto, e muito sorridente.

      Assenti, passando os dedos nos cabelos. Desfiz o rabo de cavalo, me sentei numa das beliches.

      Valéria, Fabíola, Marcos e João, nossos colegas de quarto, disfarçavam risinhos, deitados preguiçosamente em suas respectivas camas. Eram quatro mochileiros de Mato Grosso do Sul, dois casais, que passavam a vida viajando e tiravam seu sustento do canal monetizado que tinham no YouTube.

      Eles assistiram minha aula de chão com o encanto típico de quem vê pela primeira vez como é a preparação de uma bailarina antes de dançar, e me elogiaram.

      — Menina, tu faz isso todo dia? — João era o mais simpático do grupo. 

      — Quase todo dia — respondi.

      — De uma coisa tenho certeza — Valéria tirou um diário da mochila cargueira. — Não nasci pra ser bailarina.

      O som das nossas risadas preencheu o quarto. Os hóspedes da suíte ao lado resmungaram, obviamente incomodados com o barulho.

      Os quatro aventureiros  pularam de suas camas e foram se juntar aos outros hóspedes na mesa de refeição.

     Me levantei, arrumei a calcinha por dentro da malha. Os olhos do meu pai encontraram os meus. Sorri com ternura pra ele, que retribuiu passando seu braço comprido e musculoso em volta do meu corpo fino e dolorido.

      — Senti sua falta — confessei. 

      — Também senti — ganhei um beijo na testa. 

      — Pai, sobre o Vítor Hugo…

      — Não precisa me explicar nada. A vida é sua. O corpo é seu.

      Meu pai era avesso a fazer cobranças. Não que eu quisesse fazer da minha vida o que bem entendesse. Tenho certeza que o Daniel me mandaria para a Sibéria se eu cometesse a maldade de promovê-lo a avô aos trinta anos de idade.

      Me estapeei mentalmente ao pensar nessa possibilidade. 

      — O Antony vem amanhã. Meu figurino de O Quebra Nozes está com ele.

      — Gosto dele. Espero que vocês se casem.

      — Não estamos com pressa. Por enquanto, é melhor que cada um more na sua casa.

      — Pai… Eu posso te dizer uma coisa?

      Daniel Răducanu, o Primeiro Bailarino da Companhia Paulistana de Ballet, um artista que parecia não se abalar com nada, que não sabia o que era sentir pressão, subitamente franziu o cenho. Vi preocupação em seus olhos, azuis iguais aos meus e aos da Françoise. Levei a mão à boca pra disfarçar um riso.

      — Eu queria muito que você e a minha mãe tivessem sido um casal. Que tivéssemos sido uma família de verdade, com direito a um cachorro e tudo.

      Um sorriso terno pendeu dos lábios carnudos dele, que me apertou contra seu peito.

      — Danny, sua mãe e eu sempre fomos os melhores amigos do mundo. E foi bom que tenha sido assim.

      Ele me soltou, pegou o celular na cabeceira da cama.

      — Vamos tomar café da manhã? — ele propôs.

      Assenti em acordo.

      A mesa estava ricamente posta. Bolo de fubá com recheio de queijo, e de mandioca. Pão caseiro, integral, manteiga, doce de leite, uma garrafa de café, outra de chá e um bule com leite, além de outros doces. E uma fruteira com maçã, banana e fatias de abacaxi numa travessa.

      Me surpreendi que eu estivesse com um pouco de fome. Às vezes, o cheiro de doce e de fritura faziam meu estômago revirar, mas a aparência e o cheiro do bolo de fubá eram tentadores.

DanielleDonde viven las historias. Descúbrelo ahora