Vítor Hugo
Havia três semanas que eu sentia que alguma coisa estava errada com meu corpo. No espetáculo de fim de ano, em que o Agatha Toller Stude de Danse apresentou o Segundo Ato de Giselle, comecei a sentir algumas estagnações. Como passava rápido, dava pra ignorar, mas não os resfriados, que não melhoravam nem com analgésicos.
Acho que era por causa do clima seco de Ribeirão Preto, já que não chovia há semanas. Enquanto eu assistia ao ensaio da Rafa e da Ana, meu telefone tocou e sai para atender na coxia.
— Oi, dona Carmem. Tudo bem?
— Pra você, meu nome é mãe.
— Ah, tá bom — revirei os olhos ao responder. Minha mãe odiava quando eu a chamava pelo nome, e eu sempre fazia isso para irritá-la.
— Você já dançou hoje?
— Não, mãe. Só vamos começar às 16 horas, se não houver imprevistos.
— E o seu resfriado? Está tomando o remédio?
— Estou. E não está adiantando nada. Mas deve ser por causa desse calor fora de época em São Paulo.
— Vai à uma farmácia. Não é difícil achar um farmacêutico que entenda um pouco de medicina, como o Wander.
— Não, mãe, deixa. Quando eu voltar pra Jundiaí, passo no seu Wander, sei lá. Não é corona vírus, fica tranquila.
Outra coisa que irritava dona Carmem Lúcia Costa era quando meu pai e eu do nada lembrávamos dessa merda de doença, que matou muita gente e levou embora duas das melhores amigas dela, e também uma bailarina do nosso estúdio.
Eu devia ter calado a boca. Não dizem que o silêncio diz muito e nunca erra?
— Tínhamos combinado de nunca mais falar sobre esse vírus aqui em casa, você se esqueceu?
— Eu sei, mãe. Desculpa — massageei uma das têmporas enquanto me sentava.
Duas belas bailarinas louras passavam fofocando pelo corredor em voz alta e pedi rispidamente para que tagarelassem baixo para eu poder conversar com minha mãe. As garotas me olharam assustadas.
Odeio bailarinas fofoqueiras. Sério.
— Você gritou com alguém, filho? — mamãe empregou um tom de reprovação na pergunta.
— Eu não gritei. Eu pedi pra duas meninas conversarem mais baixo pra gente poder falar.
— Pois parece que ouvi um grito.
Revirei os olhos novamente. Minha mãe não podia reclamar, já que puxei o temperamento forte dela.
Dona Carmem Lúcia fez um verdadeiro interrogatório, perguntando um pouco de tudo. Como era Ribeirão Preto. Se o teatro era bonito. Perguntou se eu havia conhecido uma moça interessante. De brincadeira, respondi que os homens eram muito mais gostosos.
Se bem que a loura de sardas e aparelho de dente era muito gata.
— Vítor Hugo, meu filho. Tenha juízo aí, tá?
— Mãe, a gente já conversou sobre isso tantas vezes. Eu não vou mudar porque a senhora e o meu pai querem. Sou bissexual, gosto de homens e mulheres e pronto.
— Pois eu preferia que você gostasse só de homens. Pelo menos você teria convicção do que quer.
Mordi meu lábio inferior, pensativo.
Infelizmente, em pleno século XXI, muitas pessoas meio que ainda pensavam como na Idade Média e viam sexo como tabu. Tanta coisa havia mudado, e no entanto, a preferência sexual de uma pessoa ainda era alvo de julgamentos preconceituosos.
Minha mãe, no fundo tinha medo que, por eu ser bissexual e bailarino, sofresse preconceito ou agressões das pessoas. Ela sempre me apoiou no balé, porque via em mim a realização de um sonho do qual não pôde correr atrás, já que era de família pobre e o balé é um estudo muito caro e para poucos. Era ela quem me levava no estúdio da Agatha e também minha maior fã. Era ela a primeira pessoa que eu ia abraçar depois de vencer uma competição.
Morávamos numa casa que pertenceu ao meu avô paterno, localizada num bairro de classe média de Jundiaí. Nossa vida era simples, mas nunca nos faltou nada, tipo, comida, roupa e tal.
Meu pai era motorista de caminhão autônomo e ganhava a vida transportando carga numa carreta Scania P 310. Não falávamos a mesma língua. Nunca concordávamos em nada, sempre vivíamos em conflito, e ele só aceitou que eu estudasse balé clássico porque a professora Agatha o convenceu de que eu tinha talento e podia ter um futuro promissor, com possibilidade de dançar numa companhia estrangeira.

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Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...