Capítulo 17

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          Vítor Hugo

      — Vocês dois ficam — o tom de autoridade na voz de Carlos Amaral era tão imperativo, que Danny e eu estacamos na hora.

      Ele levantou-se de sua cadeira, na qual durante quase duas horas ficou sentado, fazendo anotações que eu não fazia a menor idéia do que eram. Como um avaliador. Veio até nós, parou a quase um braço de distância, tirou os óculos. Os olhos dele eram negros. Seu rosto, fino, terminado num queixo afinado, tinha uma barba rala. O nariz era aquilino, e os lábios divididos por uma linha fina. 

      Era um homem de mais de quarenta anos de idade, mas de uma compleição física imponente.

      Danielle recuou um passo, assustada, fazendo uma expressão tipo: “o que foi que eu fiz?”. Mas eu nunca tive medo de cara feia.

      — Tenho um convite para vocês. 

      Danielle e eu nos entreolhamos. Os olhos dela brilharam, a boca carnuda semiaberta, com o aparelho de dente de pedrinhas azuis aparecendo.

      — Que convite? — perguntei, com desconfiança.

      — É mais que um convite. É um reconhecimento pelo bom desempenho de vocês na competição ontem e na aula de hoje. E uma oportunidade.

      Oportunidade?

      — Como vocês sabem, próximo domingo será a Noite de Gala do Festival de Dança de Ribeirão Preto, e os vencedores de todas as modalidades e categorias subirão ao palco novamente. Participarão bailarinos profissionais convidados. Inclusive seu pai, Danielle.

      Soltei o ar pela boca num claro ato de ironia. Aquilo devia ser ideia do idiota do Beto Corrêa.

      A garota pôs a mão na boca, surpresa com a novidade. A participação do Daniel Răducanu abrilhantaria o fim do Festival. Era ótimo.  

      — A direção da produtora decidiu incluir duas variações clássicas na noite de encerramento. E também um pas de deux. Observei todos vocês hoje, avaliei critérios como musicalidade, expressividade e técnica, e cheguei a conclusão que vocês dois são perfeitos para dançar os papéis que escolhi.

      — Eu não tô entendendo muito bem... — Danny questionou — Que papéis são esses que você quer que dancemos?

      — Variações de Cisne Branco e Príncipe Siegfried. E grand pas de deux de Lago dos Cisnes.

      Danielle e eu nos olhamos incrédulos. Dançar o casal mais amado do balé clássico era mais do que uma honra, era uma responsabilidade e tanto, uma oportunidade pela qual sempre esperei. 

      Para Danny, claro que esse papel  seria mais do que especial. Toda garota que calça uma sapatilha de ponta sonha dançar a doce, meiga e triste Princesa Odette, a garota transformada em cisne. Era o papel mais do que perfeito pra ela. Era feito especialmente pra ela.

      Sorrimos um para o outro.

      Subitamente, porém, meu entusiasmo murchou. O espetáculo seria dali a três dias. Estávamos falando de apenas três dias de ensaio. Para dançar Paquita, ensaiei durante quase um mês. Eu era perfeccionista e muito preocupado com o que o público pensava de mim, e não achava legal oferecer a ele algo que não fosse bom.

      Micaela e eu começamos a ensaiar esse pas de deux, mas não demos continuidade. Abortamos os ensaios para participarmos do Festival de Joinville, e eles sumiram da nossa lista de prioridades. Talvez ainda o dançassemos mais para frente.

      Se Micaela tivesse sido escolhida, era mais fácil, já que ela era experiente com duos. Danielle não me inspirava confiança. A verdade era que Danielle era uma incógnita. Uma coisa era treinar pirouettes brincando enquanto alguém filmava, ensaiar com seriedade era outra, ainda mais erguendo uma bailarina por cima da minha cabeça, fazer movimentos arriscados, e com um ensaiador falando grosso, te cobrando a todo momento.

      — E então? — Carlos pôs as mãos na cintura.

      — Desculpe, mas... — eu ia objetar.

      — A gente aceita! — Danny deu um pulinho e bateu palmas. Que meigo! Ela lembrou uma criança quando ganha a primeira bicicleta do pai. — Não aceita? — ela me encarou com tanta doçura e felicidade, que fiquei indefeso. — Por favor, é muito importante pra mim.

      — Eu…

      — Ótimo! — a mão de Amaral pousou sobre meu ombro; era pesada. — Eu sabia que podia contar com vocês. Para não perdermos tempo, começaremos os ensaios depois da aula de pontas das meninas. São só quatro dias de ensaios, e eu previno vocês: sou exigente.

      Óbvio que era exigente.

      Quatro dias de ensaios. Contando com o domingo. Se Deus existisse (e eu achava que ele não existia), teria que fazer hora extra para que nosso duo saísse bom.

DanielleDove le storie prendono vita. Scoprilo ora