Capítulo 36

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          Danielle

      Como um comecinho de manhã é lindo. E como é gostoso sentir no rosto a brisa fresca. Os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, por detrás dos prédios, e um sentimento muito bom se aconchegou em mim; acho que esperança. Minha mãe sempre dizia que  um começo de manhã é uma página em branco para escrevermos mais um capítulo da nossa história. 

      Quando eu era criança, Françoise lia pra mim histórias de princesas que corriam perigos e depois eram salvas por príncipes encantados. E depois viviam felizes pra sempre. 

      Fôsse numa história da Branca de Neve, da Cinderela ou da Rapunzel, a garota sempre dependia de um príncipe para ser feliz. Quase um clichê.

      Mas uma adolescente de quinze anos pensa diferente. Eu não era mais criança para acreditar em finais felizes, que um homem tivesse a chave da minha felicidade. Ela teria que ser uma conquista só minha. E viria de dentro pra fora, sem depender de ninguém.

      Bebi um gole de mate, olhando alegremente para o sol que se levantava aos poucos, cobrindo de dourado tudo que estava próximo à ele. Eu não entendia como podia existir pessoas que se levantavam às nove, dez, ou até meio-dia, e perdiam um momento como aquele, lindo.

      Segurando a cuia diante de mim, passei os dedos no meu cabelo, sendo tomada por um súbito sentimento de ternura. Eu vivi uma semana de sonho. Dancei e fui ovacionada pelas pessoas. Senti o amor delas preenchendo meu coração e o aquecendo, me dando motivação a nunca desistir do meu sonho. Foi lindo. 

      Tudo graças ao Vítor Hugo. Ele me fez brilhar. Me passou confiança, se comportou como um perfeito cavalheiro acompanhante do balé e fez eu me sentir flanando no palco como um cisne que eu sempre quis ser. Sempre que precisei, ele estava ali, como um amigo.

      Ter feito ele acreditar que podíamos ter um envolvimento amoroso deixou na minha boca um gosto mais amargo do que o mate que eu tomava. Achei que estava sendo injusta, e que podia ter dito de outra forma  que não podíamos ficar, uma forma que não deixasse feridas.

      Nem sempre é bom ser franca e direta, porém quem me conhece, sabe que não volto atrás nunca. A dança fez de mim uma pessoa objetiva.

      Eu gostava do Vítor Hugo. Muito. Ele sempre seria especial pra mim, ele mexia comigo, me fazia ter pensamentos que faziam minha calcinha molhar. 

      Mas não era amor. Amor é diferente, exige muita entrega e um compromisso que eu não queria assumir.

      Eu não podia amar ainda. Tinha uma carreira pela frente, e além disso, ele tinha a dele. Éramos de mundos totalmente opostos.

      Para que duas pessoas possam ficar juntas, elas precisam ser da mesma substância e ter um propósito em comum, construir um mundo juntas, e não tínhamos esse projeto. Não havia nada de errado com isso. Éramos adolescentes.

      Mas toda vez que eu dizia essa frase, não posso namorar sério porque sou adolescente e tenho sonhos, parecia que eu só queria uma desculpa. Ou uma muleta de apoio à minha inclinação em testar meus limites mais e mais.

      Tomei mais um gole de mate, e pus mais água quente na cuia.

      Pensei um pouco na semana que acabava de começar.

      A maioria dos bailarinos que competiram em Ribeirão Preto havia voltado para suas cidades de origem. Porém, outros estavam chegando. Eram bailarinos de escolas filiadas à Promoarte dos cinco Estados onde a mesma atuava. Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul.

      Não iríamos mais disputar medalhas com solos, variações ou duos e conjuntos. Iríamos ter duas semanas de Curso de Verão, dado por professores da filial paulista da produtora. Ao final dançaríamos um espetáculo.

      As disputas, a partir de agora, seriam pelos papéis mais importantes.

      Incomodada com o raio de luz solar que atingiu meus olhos, me coloquei em pé e voltei para dentro do hostel. Não queria que a Rosário me visse só de camiseta e short, quando servisse o café da manhã. Casa de família, né?

      Tirando seu Ígor e seu Tales, o hostel até que era bonitinho. Aconchegante, com ar condicionado — imagine se não tivesse isto, com o calor que faz no verão — , e móveis bem trabalhados.

      Na estante, além da televisão de tela plana, tinha livros. Não tive tempo de ler nenhum. Uma imagem me incomodava bastante, a de São José, o justo, e da Santíssima Virgem Maria com o Menino Jesus. Os católicos acreditam que eles são a Sagrada Família. Para nós, ortodoxos, a Sagrada Família são Joaquim, Ana e Maria, e temos até um ícone.

      Meu pai fazia algumas anotações num caderninho quando entrei no quarto. Os hóspedes mochileiros estavam acordados, teclando celulares, sequer notando minha presença.

DanielleWhere stories live. Discover now