Danielle
Como perdoar um cara que abandonou uma criança recém curada de um câncer numa estrada perigosa, no alto de uma serra, intentando matá-la de fome e frio? Tinham se passado cinco anos, tanta coisa tinha acontecido na minha vida, e no entanto, uma parte de mim estava presa no passado, sem poder se libertar.
Eu só tinha esquecido, não perdoado. Tudo o que a gente esquece, um dia volta a lembrar. E a lembrança daquela tarde doía demais em mim.
Engraçado se falar tanto em perdão, um dom tão divino que somente os deuses tem. Por que eu tinha que perdoar, se não me sentia capaz disso? Não era justo que meu odiado ex-padrasto não sofresse do mesmo jeito que sofri.
Flashback on:
As primeiras horas depois de eu ser jogada à minha própria sorte foram muito difíceis. Andei até meus pés ficarem com bolhas, sem destino, pedindo comida nas casas. Eu estava em choque, muito assustada e com bloqueio de contar em detalhes o que tinha acontecido de verdade comigo. Nada mais tinha importância pra mim. Os colonos das casas me davam um prato de comida, porém não me convidavam pra entrar em suas casas. Achavam que eu era uma criança doente da cabeça, ou uma pequena delinquente. É triste, mas até hoje os corações de muitas pessoas é um solo árido. Elas se envolvem com você, porém não se comprometem.
Em algumas casas, assim que eu batia a porta, me mandavam ir embora. A única mulher pra quem contei ser filha da bailarina Françoise riu e me chamou de mentirosa, e isso me desencorajou de repetir a história.
Depois de quatro dias, fazendo necessidades em qualquer mato à beira do asfalto, passando frio, arrancando cenouras de plantações pra matar a fome e com o corpo coberto de fumaça e poeira, cheguei à um posto de gasolina. Vi um moço pronto pra entrar num caminhão de cabine azul, e como fazia horas que tinha comido, pedi à ele trocado. Mas ele recusou, como os outros.
— Tô com fome… — insisti na esperança que ele me abrisse seu coração. O caminhoneiro, que era um rapaz de pouco mais de vinte anos, barba por fazer e boné, fez que não com a cabeça, então saí chateada. Passei em frente a um grupo de caminhoneiros, e então vi aquele moço voltar correndo pra churrascaria.
— Ixe! O guri esqueceu alguma coisa lá dentro — disse um dos homens.
— Bom rapaz ele. Vai levar essa carga de soja pra São Paulo, longe.
Ao ouvir que ele ia subir pra São Paulo, ignorei o aviso da minha consciência pra não fazer bobagem, e me escondi atrás do assento da carreta, aproveitando que ele estava dentro da churrascaria. Eu estava tão desesperada que não pensei em eventuais perigos.
O caminhoneiro deu a partida. Começou a cantar uma música, que eu achei muito bonita mesmo não curtindo sertanejo. Então eu espirrei, revelando minha presença. Ele guinou para o acostamento, me obrigou a descer e perguntou o que eu estava fazendo escondida no caminhão dele, e ao invés de contar tudo, só respondi que não tinha mãe e que era sozinha no mundo. O que eu podia dizer, depois de tanta gente não acreditar que eu era filha da melhor bailarina do mundo? Que importância isso tinha?
— Fique aqui e não se pendure no estribo da carroceria — o moço ordenou com dureza.
Ele era como os outros. Um insensível, sem coração. Entrou na cabine e arrancou, me deixando passando frio no acostamento, e a imagem do Laerte surgiu na minha mente. Vendo a carreta sumir, comecei a pensar que se eu sobrevivesse, nunca seria capaz de confiar nas pessoas de novo e amar alguém, e que meu coração seria duro como o de tanta gente que teve a chance de me ajudar, mas que me virou as costas. Abracei meu próprio corpo, por causa do frio e chorei. De repente, vi um homem vindo correndo em minha direção.
Era o caminhoneiro!
Ele se comoveu comigo e aceitou me levar pra São Paulo. Não conversamos nas primeiras horas. Mateus (esse era o nome do meu anjo da guarda) ganhou minha confiança aos poucos. Ele comprou roupas pra eu vestir, me deu de comer e cuidou de mim como um pai. Quando me senti pronta, contei toda minha história. Não foi fácil. Chorei como há muito não fazia, cuspindo todo o ódio que eu sentia do Laerte e da Suki. Mateus me pediu pra não sentir ódio, disse coisas bonitas sobre perdão, sobre amor, coisas tão importantes para a gente guardar e viver e que me trouxeram paz.
Nunca me esqueci dele. Todas as noites rezo por ele, e pela filha Isadora, que naquela época sofria de um problema no coração e precisava de uma operação cara. Meu pai, em agradecimento, depositou uma grande quantia em dinheiro na conta dele, pra que não precisasse vender o caminhão. Aquele homem que num primeiro momento me virou as costas, ouviu a voz do coração e não desperdiçou a chance de voltar atrás. Ele sempre vai ter um lugar especial no meu coração.
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Danielle
Storie d'amorePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...