Capítulo 65

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          Vítor Hugo

      Com certeza, a melhor parte de um espetáculo é quando ele termina. O que não quer dizer que antes que comece não seja legal. Sempre gostei de ver a casa se enchendo pouco à pouco, de me verem ensaiando e de posar para fotos com admiradores e pessoas do nosso meio.

      Eu carregava aquela sensação tão gratificante de missão quase cumprida, estava em paz comigo e com o mundo. Danny fez muito mais do que me ensinar o significado verdadeiro da palavra amor. Deu sentido à tudo na minha vida que havia perdido cor, fez de mim um homem novo, e eu queria fazer tudo valer a pena.

      Um pouco depois da marcação de palco, à pedido dela, liguei para meus pais contando que estávamos namorando. Minha mãe ficou feliz. Já meu pai fez uma de suas brincadeiras, dizendo que eu o havia puxado.

      — Trate de respeitá-la e dar todo o amor que ela merece, ou você vai se ver comigo, mocinho — dona Carmem Lúcia exigiu em tom de ameaça.

      — Pode deixar, mãe. Tchau.

      Faltava contar para o pai da bailarina, mas eu não acha que ele fosse impedir. Eu havia conquistado seu respeito. E eu era o melhor para sua filha.

      Tânia Dressler pediu pra rodar o filme do Curso de Verão da Promoarte e segurei à custo a vontade de chorar ao ver imagens da Danny saltando e girando pirouettes durante as aulas. O maior destaque para ela era mais do que justo, porque chamou pra si a responsabilidade de tudo, sem se envaidecer, sem deixar de ser aquela moça humilde que conheci no segundo dia do festival.

      Toda vez que nossos olhos se encontravam, eu sentia aquele mesmo encanto que vi no dia em que ela entrou desfilando na aula da Manuela Almeida. De collant, polaina. E tudo dentro de mim orbitava em volta daquela garota.

      Corri para a coxia depois de dar um último beijo na loura pintadinha, tendo como desgosto ver rapazes com as bundas de fora, se vestindo.

      — Cara, daqui a pouco você vai entrar — Ítalo me olhou por sobre o ombro. Estava terminando de erguer a calça. Ele seria um dos bailarinos da valsa da côrte.

      — Eu sei. Costumo me trocar rápido, dá tempo — respondi.

      Formei uma enorme bola disforme com a camiseta e a calça de moletom da Promoarte, atirei-a no chão junto com as peças de roupa dos rapazes.

      — Seus pais virão? — Angel vestiu seu figurino de Rotbarth, abaixando-se para calçar as sapatilhas.

      Sorri com tristeza.

      — Infelizmente, não. Jundiaí fica longe e meu pai tem muito trabalho pra fazer.

      — Os meus também não — o colega da Danny respondeu dando de ombros. — Mas quer saber? É bom que fiquem em São Paulo.

      — Por quê?

      — Se fôr para meu pai vir só porque sou filho dele, então prefiro que nem venha. 

      Havia revolta na expressão do bailarino louro.

      — Ele não te apoia no balé?

      — Não mesmo. Meu pai é um mecânico de motos, cheio de tatuagens nos braços, e é um funkeiro doente, sem cultura e sem classe. Acha que homem tem que comer mulher e fazer coisas de homem — Angel fez um sinal de aspas com os dedos e uma careta — Ele surtou quando soube que eu fazia balé depois da escola e que sou gay.

      Senti desprezo pelo pai do Angel mesmo sem conhecê-lo. 

      — E a sua mãe? — questionei.

      — Minha mãe estava no último ano do colegial quando me teve. Também tinha péssimos gostos musicais e pouca educação. Só ia à escola pra ficar com garotos, e aí conheceu meu pai num baile funk. E então, você já sabe. Eu entrei na vida deles. Mas desde pequeno eu me conscientizei que era diferente dos dois. Eu queria ser alguém, ter um futuro. Conhecer gente inteligente, ser famoso. Eu curtia MPB e boa música internacional. Gostava de dançar. Aí a mãe da Jordana, uma colega de balé minha e da Danny, e que não veio pra cá, me levou pra conhecer um estúdio de balé na Lapa e fiz uma aula experimental. Foi amor à primeira vista. Eu decidi que queria fazer balé, e sem que meus pais soubessem, passei a fazer aulas com um collant e uma sapatilha emprestados da Jordana. 

      Sorri com ternura, percebendo muitas semelhanças da história do amigo da Danny com a minha. 

      — E como você contou aos seus pais?

      — Já ouviu falar que mentira tem perna curta? — respondi que sim com a cabeça. — Eu inventei que ia jogar futebol, videogame, na casa de um colega. Mas um dia minha mãe ligou na casa dos pais desse colega e pediu pra eu tomar um remédio. Mas o Angel não está aqui, a mãe do meu colega respondeu. Quando voltei pra casa, meus pais obteram toda a verdade e fiquei de castigo, além de tomar uma surra de cinto no traseiro nu. Fui proibido de fazer de balé. Meu pai disse que era coisa de veado — lágrimas rolaram dos olhos do bailarino. Ítalo e eu nos olhamos, nós se formando nas nossas gargantas.

      — Só que eu tinha decidido que queria ser alguém na vida. Eu queria dançar e ponto final. A vida sem graça dos meus pais não me servia, e graças a Deus, eu tive pessoas incríveis que me ajudaram a realizar meu sonho. Minha primeira professora procurou meus pais e os convenceu a me deixarem fazer aulas de dança, prometendo custear meus estudos e garantindo que eu seria um ótimo profissional. À contragosto, eles aceitaram. No fundo, todo pai e toda mãe querem um futuro melhor para seus filhos.

      — Pelo menos isso — respondi.

      — Eu nunca tive a aprovação deles. Eles nunca assistiram a uma apresentação minha, e isso dói muito, sabe? E essa dor só cresce ano após ano, quando estou perto de chegar a idade adulta, de entrar numa companhia profissional, e meus pais nunca estarem lá depois do espetáculo pra me darem um abraço. A minha família de verdade são a Danny, a Nicole, a Duda, a Jordana e todos os meus colegas da Letícia Espinoza Escola de Dança. Porque podemos ter muita rivalidade, egos do tamanho do mundo, mas todos temos os mesmos sonhos e os mesmos medos, e isso nos une. 

      Angel interrompeu seu relato para chorar, e Ítalo se aproximou para abraçá-lo. 

      Antes eu o achava presunçoso e arrogante. No fundo, era só um garoto triste e sozinho, sem apoio dos pais, e que criou uma máscara de autossuficiência para que ninguém soubesse o quanto sua vida era cinza fora da sala de aula.

      Passei a admirá-lo naquele instante.

      Me adiantei, toquei em seu ombro, tive sua atenção pra mim.

      — Eu nunca te pedi desculpa por aquele dia em que eu te empurrei com o ombro, não é? 

      Me lembrei do ensaio de pas de deux dele com a Danny.

      Angel abanou a cabeça negando.

      — Me desculpe — pedi.

      Um sorriso surgiu no rosto molhado de lágrimas. 

      — Tá tudo bem. Não sei guardar raiva de ninguém.

      Tomado por um sentimento forte de amizade, abracei o garoto de cabelos loiros.

      — Não fique assim — pedi. — Não chore. Deixe pra chorar depois do espetáculo, de felicidade. Ânimo, cara.

      Olhei com o canto do olho para Léo, já caracterizado como Bufão. Ele estacou por um momento, me olhando de um jeito terno que não era dele. Ítalo, que ainda estava ali, se juntou ao nosso abraço, e Léo buscou um espaço entre nós. Era a primeira vez que os três principais bailarinos do Ato 2 de Lago dos Cisnes e o coadjuvante de luxo (o Ítalo) ficavam tão próximos, como amigos.

      — Agora enxuga essas lágrimas e vamos logo — segurei o Angel pelos ombros, dando uma leve sacudida.

      — Tá — ele sorriu.

      A história do Angel me modificou de uma forma abrupta, fazendo com que eu quisesse ir além de todas as minhas forças. Por ele e por todos os garotos que sofriam preconceito por serem dançarinos.

      A orquestra introduziu a música. De repente, toda a minha infância veio diante de mim em forma de flashes.

      Eu entrando no estúdio da Agatha segurando a mão da Micaela. Todas as meninas me olhando com curiosidade. Meu primeiro plié na barra, usando um collant de menina.

      A lembrança mais forte, que fez meu coração bater mais apressado contra o peito, é a da pergunta que a Agatha me fez.

      Por que você quer fazer balé?

      Meus olhos encontraram os da professora, em expectativa pela minha resposta.

      Porque a Micaela disse que quem dança é mais feliz.

      Enquanto as bailarinas caracterizadas como cisnes passavam por mim correndo graciosamente, em direção ao palco iluminado em tons bruxuleantes de luz noturna, suspirei profundamente.

      As cortinas se abriram.

      Minhas emoções mais profundas se sobrepuseram à razão, me dando o impulso para me desnudar, para me dar meu coração e minha vida para aquelas pessoas.

      Se me perguntassem naquele dia porque eu era bailarino, eu tinha a resposta.

      Ela não mudou. Continuava a mesma de dez anos atrás.

      Eu era bailarino porque queria ser feliz.





DanielleWhere stories live. Discover now