Letícia Espinoza
Parar de dançar foi uma das decisões mais difíceis que tomei. Costumamos dizer, no balé, que uma bailarina morre duas vezes. Uma delas, sua morte biológica. Outra, mais triste, quando encerra sua carreira.
Aos 22 anos de idade, eu era solista de uma companhia em Hamburgo. Não tinha pretensão alguma de ser uma primeira bailarina, simplesmente eu era feliz dançando. Uma lesão no meu joelho direito me obrigou a abandonar os palcos. Não é fácil deixar de fazer uma coisa que sempre te fez feliz, porém optei em parar cedo demais do que tarde demais.
Ao invés de me deprimir e tomar garrafas de Cointreau, vi na minha aposentadoria precoce uma oportunidade de ser feliz de outro modo. Me casei com o Ricardo, meu noivo. Voltamos para o Brasil e aluguei o prédio que no passado abrigou o Pas de Quatre Stude de Danse, onde Françoise, Daniel e eu estudamos juntos até os catorze anos.
Tudo naquele velho estúdio de balé me lembrava um passado bonito, de muitos festivais, a gostosa rivalidade entre as bailarinas e a rigidez da minha professora, a ucraniana Oksana Maznova (in memorian). Uma época que havia ficado em fotos e vídeos.
Eu queria começar algo novo e ao mesmo tempo seguir o padrão de qualidade do método Vaganova de ensino com o qual fui ensinada. O Método Russo. Ricardo me ajudou a pintar as paredes, inclusive brincamos várias vezes de ter doze anos de idade, ao sujar um ao outro de tinta. Transformei o antigo ateliê num bookafe – com sucos Detox, lanches naturais, capuccino e muitos livros sobre balé – e reformei todos os cômodos. Tudo ganhou um ar de novo.
Substitui o nome Pas de Quatre Stude de Danse por Letícia Ballet, e o inaugurei dois meses antes do Felipe nascer.
Os alunos começaram a chegar e de imediato me apaixonei por todos. Duda, Jordana, Carolina, Alice, Nicole, Angel. Para mim, elas eram as crianças mais lindas do mundo. Muitos entraram e saíram semanas depois, desmotivados por causa da disciplina e dedicação que o balé clássico exige. Duda era a mais dedicada, mas também a que tinha a família mais humilde. Era a única bailarina negra do meu estúdio. Por ser a mais alegre, a mais comprometida com a escola, dei a ela uma bolsa de estudo integral e fiz dela minha petit étoille.
As coisas seguiam seu rumo natural, até que um dia, enquanto eu dava aula, Clara, minha secretária, entrou na sala.
— Letícia, querem falar com você — ela comunicou.
— Estou dando aula, agora. Resolve pra mim?
— Ela disse que tem que ser pessoalmente com você.
— Ela? É uma mulher, então?
— Sim. Está com uma menina.
— Clara, aulas experimentais devem ser marcadas por telefone ou pelo site. Com antecedência. É você quem trata disso. Eu só dou aula.
— Devo mandá-las embora, então?
Mordi meu lábio inferior. Não queria conversar com nenhuma mãe. Meus alunos iriam participar de seu primeiro festival pelo meu estúdio e eu tinha necessidade de dar total atenção à eles.
Por outro lado, me sensibilizei com a mãe e a filha dela, que talvez tivessem vindo de longe.
Deixei Clara dando aula no meu lugar e fui a secretaria, aborrecida. Ao ver quem era a mãe, fiquei admirada. Era a Françoise, o Cisne Branco, a maior bailarina clássica de todos os tempos. Minha ex- colega de balé. Ela usava uma jaqueta de couro, calça jeans justa e botas de cano alto, e tinha um capacete preto pendurado no cotovelo. Ela sempre gostou de motos Hayabusa.
A ruiva, que nós chamávamos de “Foguinho”, segurava uma menina pela mão. O aspecto dessa criança era bem triste. Uma garota de dez anos, olhos azuis e sardas, e completamente careca. Usava uma jaqueta de couro igual a da mãe, calça justa e botas de cano alto. Também segurava um capacete, porém cor de rosa.
Françoise estava mais linda do que nunca. O cabelo vermelho como fogo, os olhos azuis desafiadores, o rosto também cheio de sardas. Mãe e filha pareciam gêmeas.
— Lembra de mim, Letícia?
A simples presença do Cisne Branco intimidava qualquer pessoa. Ela tinha uma aura pulsante, que fazia com que qualquer bailarina sentisse um golpe na auto estima só de ficar perto dela.
Apesar de Françoise ser a Primeira Bailarina por excelência, me fez um pedido que mais parecia um rogo. Que eu ensinasse balé à pequena Danielle Raluca.
— Foguinho, eu não posso ser professora da filha de uma bailarina lendária. Essa menina pode ter os melhores professores do mundo. Quem sou eu? Sou professora há apenas um ano. O que eu posso ensinar a ela?
KAMU SEDANG MEMBACA
Danielle
RomansaPara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...