Danielle
Só consigo dormir com máscara nos olhos. Qualquer clarão me desperta, e naquela manhã, uma série de tossidos do quarto ao lado me fez acordar sobressaltada e com o coração aos pulos de um sonho ruim.
Nesse sonho, fui transformada num cisne por uma bruxa às margens de um lago gelado e fiquei assim pra sempre.
Quando minha respiração voltou ao normal, tirei a venda dos olhos. Tudo continuava igual ao que vi nesse quarto noite passada.
Demorei um pouco para me tocar que eu não estava mais numa sala de aula com meus amigos, mas num quarto de hostel – o Ribeirão Preto Hostel – com meu pai. Este dormia tranquilamente, me fazendo sentir inveja.
Desde pequenininha, gostava de dormir tarde, tipo, às 23 horas, ou mais, quando passava filme legal ou jogo do Corinthians. E às cinco da manhã, estava em pé.
Nossa casa ficava num condomínio de classe média de São Paulo. Tínhamos uma piscina — a maioria das casas dali tinha esse luxo burguês —, pinheiros em volta que enfeitávamos com bolas coloridas no Natal — e que esqueci de tirar, já que vim para Ribeirão Preto um dia depois da Natividade de Deus —, e um jardim de rosas brancas que meu pai adorava.
Todas as casas seguiam um mesmo projeto arquitetônico, as diferenças entre elas eram poucas.
Mas a nossa se destacava. Ela tinha um cômodo de grossas paredes de vidro transparente, com uma barra embutida, piso de madeira coberto com linóleo e uma parede de espelhos. Era nosso estúdio de balé particular, onde meu pai e eu treinávamos todas as manhãs antes dele me levar para Perdizes.
Ver meu pai ali, dormindo tão tranquilamente, trouxe de volta lembranças dos meus dois anos de idade, de quando ele se deitava pra sestear e eu, uma menininha amorosa, subia nele e dormia em seu peito.
Conversávamos pouco. Nossas frases eram curtas, mas havia um amor entre nós que não se expressava por palavras, mas por gestos sinceros sem nada dizer. Eu sentia orgulho de ser filha dele. Nunca me esqueci do dia que nos tornamos pai e filha, de verdade, após o babaca do marido da minha mãe me abandonar no mundo.
Me levantei e fui até ele. Parecia estar dormindo o sono da eternidade, de tão sereno, mal respirando. Sorri, tocando de leve seu rosto tão perfeito e jovem.
Caminhei devagarinho até a porta com passos miudinhos de gueixa, evitando fazer barulho, e como que num desenho animado em que os personagens sempre se fodem, chutei com o dedinho do pé esquerdo a quina do armário de madeira que guardava nossas coisas.
Foi preciso eu levar a mão à boca pra abafar um palavrão. Peguei uma mochila menor do chão, abri a porta e sai.
Me sentei no chão encostando na parede e gemi baixinho de dor, tocando o dedo que deu pataço no móvel.
— Justo esta unha? — olhei para o teto, como quem pergunta por que, meu Deus?
Abri uma das gavetas da copa e tirei uma caneca preta, que enchi com água e pus no fogão.
Tirei uma garrafa térmica da mochila, a cuia e a bomba, abri o pacote de erva mate, e me lembrei da noite de ontem enquanto a água fervia.
Sorri feito boba. Feliz.
Como não ficar feliz depois de conquistar o primeiro lugar no pas de deux clássico com o Angel? Nossa apresentação foi simplesmente incrível. Dizer que eu era a Diana mais linda da noite não era convencimento, mas a pura verdade. Eu mostrei que sabia dançar pas de deux.
As pessoas vibraram com nossa performance e gritaram meu nome de novo, quando subimos ao palco para receber nossas medalhas parecia que ia ser vencida pela vontade de chorar de felicidade.
O assédio das pessoas foi tão grande que senti um pouco de sufoco. Donos de escola pediram pra eu ligar para eles agendando uma aula experimental quando o Curso da Promoarte terminasse. Acredita que tinha até olheiro do Teatro Colón?
Dei respostas evasivas, sem muito interesse nas propostas. Eu não queria deixar de ser aluna da Letícia por enquanto, me sentia bem na minha escola e sabia que tinha ainda muito o que aprender antes de entrar para uma companhia.
Mas me sentia honrada por despertar interesse de boas escolas. Quem sabe eu mudasse de ideia e entrasse para uma companhia estrangeira, igual à que aceitou Vítor Hugo.
Minha vitória ontem teve um gosto mais do que especial. Eu não só provei que sabia dançar pas de deux. Eu provei para o Vítor Hugo do que eu era capaz, e que o que ele disse ontem no restaurante foi desnecessário.
Ele vacilou demais. Eu não conseguia entender o que o Angel fez pra tomar um empurrão assim, do nada, e o que eu tinha feito para o bailarino se comportar de um jeito tão infantil.
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Danielle
Roman d'amourPara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...