Danielle
Agradeci à enfermeira pela bandeja de comida que trouxe e acomodei na mesa ao lado da cama, aguardando que a paciente despertasse. Tomara que não demorasse muito para isso acontecer. Queria trocar com ela algumas palavras antes de ir para a aula, mesmo sabendo que os rumos da conversa eram imprevisíveis.
Estar no quarto já era um lucro e tanto. Menores não costumam ser autorizados a visitar pacientes. Mas a mãe e a professora da convalescente convenceram a direção do hospital, então ali estava eu, Danielle, aguardando que os olhos puxados de japonesa da Miyuki se abrissem para eu poder lhe dar um bom dia.
Antes que as duas mulheres mais velhas voltassem, observei o fêmur dilacerado da garota, prestando atenção nas ferragens postas ali e sendo levada à um estado de tristeza por me conscientizar do quanto a vida é injusta.
Podia ter acontecido com qualquer um.
Até comigo.
Miyuki despertava aos poucos, ao bocejar seus olhos puxados se abriam e fechavam como se o brilho da lâmpada a incomodasse.
Minha presença não pareceu desagradá-la, mas sua reação foi de surpresa.
— Oi, Miyuki — dei um sorriso para ela.
Ela tentou se sentar na cama, e eu a impedi, para evitar movimentos.
— Você não pode se mexer. Precisa se manter em repouso.
— Por que está aqui? — ela perguntou.
— Pra te visitar.
— Eu sei. Mas por quê…?
— Achei que faria bem pra nós duas se conversássemos um pouco. Conversar distrai, faz o tempo passar.
Um sorriso irônico surge nos lábios da Miyuki.— Queria que a minha vida passasse — ela se virou para a parede. — Eu queria morrer.
— Não fala assim, Miyuki.
— Pra que viver e nunca mais poder fazer o que eu amo? Quando eu dançava, esquecia tudo, era feliz. Olha pra mim agora. Numa cama de hospital, com uma gaiola na coxa, e vou ficar com uma perna mais curta, com um pino. Nunca mais vou poder dançar.
Ao ouvir aquele nunca mais vou poder dançar, refleti sobre a força desanimadora da frase e me lembrei de quando tinha nove anos de idade. Quando descobri que tinha leucemia. No começo do meu tratamento eu estava bastante otimista, porque eu sabia o que era câncer, que matava e tal, e mesmo tendo ficado careca por causa dos remédios intravenosos, fraca e magra, dizia pra todo mundo que eu sairia daquela. Aí os meses passaram e nenhum doador surgia, e comecei a ter infecções. Senti desânimo, chegando a pensar algumas vezes que nunca mais iria dançar. E que iria morrer.
Porém, foram momentos de fraqueza. Minha fé ortodoxa nunca me deixou me entregar ao desânimo, tão logo eu caia, me levantava mais motivada a vencer, e nunca deixei de acreditar que um doador surgiria a qualquer momento.
Toquei o rosto da paciente, que fugiu ao meu olhar mirando um ponto qualquer doutro lado, nitidamente fechada a um diálogo. Eu não a julgava. O momento em si não era bom, e não éramos amigas, não daquelas que seguram a mão uma da outra e uma diz pode se abrir comigo.
— Você tem que ser forte. A sua vida teve uma mudança inesperada, vai ser diferente de agora em diante, mas você tem que erguer a cabeça e seguir em frente.
— Seguir em frente pra quê? — ela me encarou com revolta. — O que eu vou fazer se não puder mais dançar? Eu tinha o sonho de ser profissional na dança. Não venha você tentar levantar meu moral, dizer “eu sei como você se sente”, por que isso não adianta. Você tá aí, linda, maravilhosa, tem uma carreira brilhante pela frente. Mas eu… perdi tudo. Tudo!
— Não. Eu não sei como você se sente, porque nunca quebrei uma perna. Mas também passei por outras coisas que uma pessoa fraca não suportaria. Eu tive leucemia. Perdi minha mãe quando eu tinha só dez anos de idade e fui abandonada numa estrada pelos meus padrastos. Sofri distensões musculares e uma fratura no pé direito que me impediram de mostrar o que eu posso fazer de verdade. Mas eu levantei a cabeça e segui em frente, coisa que você não quer fazer, porque acha que se vitimizar é mais cômodo do que encarar esse novo desafio e por isso não aceita palavras de incentivo. Não é? Porque sua vida é uma via de mão de única, tipo,“eu não sou nada sem a dança”.
Bati as mãos nas laterais das minhas coxas, andei até a porta e voltei.
— A vida é muito mais do que dançar, Miyuki. Quem dança é mais feliz, mas você pode descobrir outras coisas de que possa gostar também.
YOU ARE READING
Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...