Vítor Hugo parte 2
O hotel era um prédio alto, todo envidraçado. A diária dele devia custar um rim. Ao me aproximar da porta, esta se abriu, e me dirigi ao balcão onde dois recepcionistas terminavam de preencher em tablets as fichas de um grupo de hóspedes.
Aguardei pacientemente, mesmo paciência não sendo uma de minhas virtudes. Prontamente desprezei os funcionários do hotel, que só são sorridentes e atenciosos porque quem se hospeda em lugares assim, tem dinheiro. E muito.
O tapete sob meus pés era felpudo, mais macio até do que a minha cama. Mas que importância tem um tapete desses num saguão? Contanto que as acomodações merecessem as cinco estrelas do Trivago.
Nunca que um bailarino podia ficar num local caro assim. Nossa vida era solitária, exigia muita renúncia, desapego de confortos. No máximo, um hostel. Além de pobres, éramos subestimados pela maioria das pessoas, que achavam que balé não era um trabalho de verdade.
Se soubessem pelo que eu havia passado para chegar a condição de um dos principais bailarinos da Alliance...
Se soubessem dos perrengues pelos quais passamos para dançar num palco, as lesões, da falta constante de dinheiro para participar de competições mesmo de audições...
O meio a que recorri para ter tudo isso era feio. Mas o que eu podia ter feito? Eu queria agora estar na minha casa. O colo da minha mãe me fazia muita falta. Seus conselhos. O café Três Corações.
Lembrar do rosto da Danny ficando pálido como basalto ao ouvir minha história de abuso com aquele bosta fazia meu peito doer. Mas eu tinha que jogar a real. Não podia esconder pra sempre. Aquele segredo estava me sufocando, senti um bem enorme ao pôr tudo pra fora. Só que ao invés de denunciar o Beto, como ela me pediu, ali estava eu, indo de encontro ao meu abusador.
Minha vontade era acender um cigarro, para relaxar, porém o hotel tinha uma placa na parede da portaria, com o objeto do meu vício com um risco diagonal em vermelho cortando-o.
Aprendi a dançar com uma grande professora. A ser um fumante, e a ser um promíscuo, com um cara que disse que gostava de mim e me deu um pé na bunda. Depois que passei a desprezar Deus, me juntei a turma dos garotos que iam para baladas e enchiam a cara antes de curtir com garotas.
Nunca ninguém me discriminou por ser bissexual. Era discreto, sem trejeitos, e caso fosse necessário, sabia me defender com os braços. E com as pernas, também.
Perdi minha virgindade de uma forma suja, com um cara mais velho, depois de uma aula de balé que cabulei. Aos catorze anos. Ele era primo da Rafa. Conversamos numa lanchonete, gostamos da conversa um do outro. Transar foi um passo natural.
Na hora achei legal. Descobertas, não é? Conhecendo a anatomia de um garoto, fazendo descobertas. No outro dia senti culpa, vergonha, e prometi a mim nunca mais fazer sexo anal. A vontade da carne foi maior, no entanto. Esse garoto e eu transamos mais vezes, ele era um ativo forte e insaciável. Me apaixonei de verdade por ele.
Quando decidi pedir-lhe em namoro, eu o vi com uma moça numa lanchonete e meu mundo ruiu. Fiquei transtornado. Me senti um objeto que se usa e joga fora depois de não servir pra mais nada. Meu sangue evaporou e entrei intempestivamente no estabelecimento, indo direto à mesa onde o casal estava.
— Como você pôde fazer isso comigo? — foi o que consegui perguntar depois de dizer vários impropérios, aos que ele respondeu com cinismo e deboche, enquanto a moça ria.
— Você é uma bicha romântica. Tem muito o que aprender. Nunca te prometi nada, não te dei nenhuma esperança. Achou que eu ia me apaixonar por você? Logo por você, uma bailarina? Vaza daqui. E aprenda que a vida foi feita pra curtir.
O fora doeu tanto que chorei durante uma semana.
Mas segui o conselho do babaca. E curti a vida. Muito. Tratei as pessoas como o primo da Rafa me tratou. Sexo sem compromisso. Sem culpa. Sem envolvimento afetivo. Sem amor.
Fatalmente, Beto Corrêa cruzou meu caminho, e ao me deixar ser aliciado por ele, sacramentei a perda da minha alma no inferno. Quem se importava? Contanto que eu pudesse dançar longe daqui, fugir de tudo e viver minha vida em paz, tanto fazia pra mim.
Então, conheci a Danny. A mais linda de todas as garotas que vi, perfeita. Uma princesa. Um anjo. No começo, o que me atraiu foi a beleza dela. Seu corpo. Seus olhos azuis, suas sardas tão graciosas. Claro que eu senti desejo sexual, com a diferença que esse desejo veio com outro sentimento. Um sentimento desconhecido, assustador, porém bom, e que eu não sabia o que era.
Eu não tiraria a razão dela se sentisse nojo de mim ao saber o que eu era, e quisesse ficar longe de mim. Mas ela não me julgou. Sem que eu esperasse, ela me abraçou e ficou do meu lado.

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Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...