Danielle parte 2
Foi numa tarde de muita chuva que recebi a pior notícia da minha vida. Que Françoise não voltaria mais do coma provocado pelo acidente que vitimou, além dela, nove bailarinas do New York City Ballet.
Olhei pela janela do quarto os médicos retirarem os aparelhos que mantiveram minha mãe viva durante quatro dias e colocarem um pano branco sobre seu corpo frio e sem vida. Nesse instante uma parte de mim morreu com ela.
Minhas lágrimas rolavam copiosamente. Eu estava inconformada, não acreditando que nunca mais receberia o abraço carinhoso da pessoa que eu mais amava. Nunca mais eu veria o sorriso cheio de amor que mamãe sempre me dava. Quando os médicos a tiraram do quarto numa maca, eu quis ser levada com ela, mas Laerte, me segurou pelo ombro, me abraçou e disse que teríamos de ser fortes.
Como se pede à uma criança que acabou de ficar órfã de mãe para ser forte? Eu não queria ser forte. Eu só queria mamãe de volta. Queria que aquilo fôsse só um pesadelo, e que quando eu acordasse, ela estivesse vindo ao meu encontro na saída do balé e me abraçasse como fazia sempre.
Laerte também estava inconsolável, soluçando. Minha mãe e ele foram casados durante três anos e viveram felizes até que a morte dela os separou. Os dois se conheceram no colégio e estudaram com meu pai.
Ele esperou terminar a faculdade para pedi-la em casamento, depois de um ano de namoro.
Nunca senti nada forte pelo Laerte, apesar de ele se esforçar para ganhar minha confiança. Eu achava ridículo ele tentar tomar um lugar no meu coração que pertencia só ao meu pai, eu nunca iria ama-lo como amava o Daniel. Era só meu padrasto e pronto.
Ele não precisava estar num lugar específico para ganhar dinheiro, já que sabia trabalhar com a tecnologia da informação como poucos. Era vaidoso, vestia roupas e sapatos de grife e tinha classe.
Vendo-o chorando, senti um pouco de compaixão e tive vontade de abraçá-lo, mas não o fiz. Em vez disso, corri atrás da maca que era empurrada com o corpo da Françoise coberto com o lençol, mas fui segurado por dois enfermeiros.
— Eu quero a minha mãe! Me deixem ficar com a minha mãe! — implorei, me debatendo inutilmente.
Mas as portas duplas se fecharam diante de mim, então cai de joelhos num choro convulsivo cobrindo meu rosto entre as mãos.
Françoise foi lavada e vestiram nela o figurino da Princesa Odette. Ela ficou linda, como uma princesa e posta num caixão transparente, de vidro. Parecia um cisne de verdade, adormecido. Muitos artistas prestaram homenagens à ela e também às outras moças que morreram na van que capotou na ribanceira. O primeiro velório se realizou num dos salões do Lincoln Center. Todo o elenco do seriado Ballerina compareceu para se despedir da vilã Skylar, a bailarina ruiva que minha mãe interpretou. No dia seguinte, o caixão foi trasladado para o Brasil, sendo levado para o Theatro Municipal de São Paulo.
Meu pai estava inconsolável e me abraçando, dizia que faria de tudo para ficar comigo.
— Eu não vou te deixar, meu anjo. Nós vamos ser uma família agora.
As pessoas choravam passando em frente ao caixão de cristal, prestando condolências à vó Vitória e ao vô Hamílton, e afagando minha cabeça pelada, me dizendo que mamãe agora estava com Deus.
— Obrigada por terem vindo — eu agradecia.
O que impressionava é que minha mãe tinha um semblante tranquilo, de quem adormeceu em paz. Estava linda vestida como bailarina. Suas mãos seguravam uma rosa branca sobre o peito, as tatuagens dos braços aparecendo. Uma índia e uma leoa com as iniciais F e L no esquerdo, e todo o braço direito coberto por vários desenhos. Todas as outras bailarinas do elenco que morreram estavam com feridas pelo corpo (alguns dos caixões estavam lacrados), mas Françoise só tinha uma pequena cicatriz no supercílio esquerdo.
Seu corpo exalava um delicioso perfume de jasmins, seu preferido. Porém, não puseram esse perfume em seu corpo depois de a prepararem. Esse perfume era dela mesmo.
Quando o caixão desceu na gaveta do jazigo que minha avó comprou no Cemitério Ortodoxo de São Basílio e o padre começou a rezar Das almas justas, abracei as pernas do meu pai e chorei tudo o que ainda me restava de lágrimas. As pessoas que nos fizeram companhia por horas depositaram flores sobre a lápide, se persignaram com o sinal da cruz e se despediram, saindo do cemitério um por um, até que ficaram apenas meu pai e eu.
— Vamos pra casa, filha — ele pediu, se ajoelhando diante de mim e segurando meus ombros.
Acenei a cabeça e dei-lhe um abraço. Olhando de canto para o lindo jazigo, notei os coveiros lacrando com cimento a tampa da sepultura, e corri em direção aos homens, tomando a colher de um deles.
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Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...