Capítulo 31

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           Vítor Hugo

      Me sentei na primeira cadeira para observá-la ensaiando, e nossos olhares se encontraram. Aqueles olhos azuis, doces, irradiavam um encanto misterioso, uma bondade que me fazia sentir indigno de sonhar em ter algo mais do que só ficar com ela.

      Assisti com fascínio ao ensaio da loura, tão à vontade saltando e girando como se a gravidade não existisse para ela, como se ela fizesse parte do ar.

      Antes que o ensaio terminasse, me levantei e sai por detrás. Passei pelo Beto Corrêa, que fumava um cigarro, e minha repulsa por ele ressurgiu com força.

      — Ela não é pra você, Vitor Hugo. 

      Parei para olhá-lo furtivamente.

      — Meninas como ela só tem um amor na vida. A dança. Você achou que ela seria só mais uma e olhe só: está de quatro por uma garota que só quer dar.

      O nojo por aquele homem se transmitou em ódio e o agarrei pelo colarinho.

      — Vai tomar no cu! Não fala assim da Danielle!

      — Que patético! — ele debochou. 

      Encostei-o contra a parede branca com quadros de bailarinos. Minha respiração e meus batimentos cardíacos se aceleraram, como se eu não pudesse me conter.

      — Puxa, você só se complica, Vítor. Relaxe. Bola pra frente, meu amor.

      — NÃO ME CHAME DE MEU AMOR!

      — Vamos fazer um acordo: você esquece aquela menina, e a produtora continua te apoiando. Nunca mais volto a te perturbar, prometo. Você  quer dar um futuro melhor a sua família, não quer? Ou será que esse sonho se perdeu?

      Apertei a pegada no colarinho.

      — E o que você vai ganhar com isso? — o questionei.

      — Sou um bailarino, Vítor Hugo. E também coreógrafo e professor. Não é nenhuma vantagem pra mim deixar um talento como você escapar. A produtora ganhará fama e status quando você brilhar na Europa. A fama e o reconhecimento, e não você, são mais importantes pra mim.

      — Eu posso chutar tudo pro alto e recomeçar do zero numa produtora menor. Pensou nessa possibilidade?

      — Ora, faça-me o favor! Você não é mais nenhum menino. Não está em condições de desperdiçar oportunidades. Que escola de balé vai admitir um estudante cujas fotos em ângulos vergonhosos vazaram na internet?

      Meus olhos se arregalaram e senti minha cor deixar meu rosto. Beto, cínico, me segurou pelos punhos e os desgarrou de sua camisa polo.

      — Você não me interessa mais — ele disse. — Não como diversão. Mas você é importante pra mim como bailarino. Lembre-se dos seus compromissos. Se me denunciar à Polícia, sua carreira já era. Se abandonar a Alliance, sua carreira já era. Dou um jeito pra que você não possa dançar nem numa sinaleira em troca de moedas.

      Arrumando a camisa, Beto atirou a bituca de cigarro do lado e passou ao meu lado me dando um esbarrão.

      — A primeira morte de um bailarino é a pior, Vítor Hugo. Lembre-se disso.

      Tô fodido, pensei.

      Tem uma canção do Metallica que fala sobre cometer um pecado e estar preso a ele para sempre, não importa o que você faça para repará-lo. O erro sempre estará ali te perseguindo.

      O balé entrou na minha vida porque só viver não era suficiente pra mim. Mas nem o balé agora seria o bastante para eu seguir adiante.

      Ao ter a certeza de que o idiota do Beto estava a muitos metros de distância de mim, continuei a caminhar em direção ao banheiro. Lavei o rosto, enxuguei-o, mirei minha imagem no espelho.

      Fechei os olhos.

      Um garotinho entra na sala de aula. As meninas, todas com collants pretos, estão se aquecendo no centro com, e estranham ao ver uma criança de sexo oposto. Meninos não fazem balé, dizem.

      Os olhos assustados do garotinho reparam em cada uma das pequenas bailarinas, enquanto a Micaela segura sua mão. Os dois são amigos e cúmplices na travessura. Ela já está de collant, meias calça e sapatilhas.

      — Tia Agatha, esse é o Vítor Hugo. Lembra daquele amigo que eu falei pra você? Ele quer fazer balé. Ele pode, né?

      Ágatha me estuda com atenção. Sorri e se abaixa.

      — Por que você quer ser bailarino?

      — Eu gosto de dançar — respondi.

DanielleDonde viven las historias. Descúbrelo ahora