Capítulo 21

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          Vítor Hugo

      Comi meu pão na chapa e terminei de tomar meu café com leite antes dos outros, para aproveitar o wi-fi da padaria. Agatha saiu mais cedo. Ela tinha de conversar com a Letícia e com o Amaral sobre a variação e o pas de deux que a Danielle e eu dançaríamos; tinha algo a ver com a escalação das danças.

      Ontem foi um dia terrível, que eu não esqueceria facilmente. Se é que daria pra esquecer.

      Aquela garota se machucou feio, talvez nunca mais fôsse a mesma. A imagem dela saltando e caindo, os ossos quebrados saltando pra fora, insistia em voltar à minha mente, me lembrando que tudo o que um bailarino constrói em anos de dedicação pode acabar em menos de dez segundos.

      A Micaela, com quem eu teria de dançar um pas de deux de Raymonda, era alegria pura, indiferente ao ocorrido com a Miyuki. Como ela podia ser tão fria?

      Rafa, Ana e Léo olhavam as gravações dos ensaios que os dois últimos haviam feito. Eles dançariam um duo neoclássico.

      — Vítor Hugo — me virei instintivamente para a Mi.

      Fuzilei-a com um olhar encolerizado. Nunca me segurei tanto para não dizer umas boas para a morena de olhos verdes. Ela vinha se superando. Eu ainda estava puto pelo ocorrido ontem na cantina.

      — Por que você tá assim comigo? — ela notou minha cara de quem diz vá se ferrar.

      — Sua memória é muito curta. Se esquece fácil das merdas que fala.

      — Se está falando do que aconteceu ontem entre a Danielle e eu, já pedi desculpas, tá?

      — Acha que só pedir desculpas resolve?

      — O que mais quer que eu faça?

      Virei a cabeça para o lado, bufei sem paciência alguma.

      — A Danny é uma das pessoas mais legais que eu conheço, e você a expôs pra todo mundo na cantina. Como você pôde ter feito isso?

      Micaela soltou um suspiro, abaixou a cabeça, passou os dedos nos cabelos negros e lisos.

      — Você gosta dela? — perguntou.

      Não respondi.

      — Gosta? — a morena insistiu.

      Até bem pouco tempo atrás, eu teria uma resposta pronta para essa pergunta. Eu não era de me apegar a pessoas com quem transava, gostava de partir sempre para experiências novas, e eu era feliz levando a vida sem compromissos.

      Mas Danny tinha um encanto que não dava pra desvendar só com uma transa. Ela valia a pena. Aquele jeito dela, de quem desconfia e ao mesmo tempo se entrega, aquele sorriso com aparelho de dente, aqueles olhos azuis tão lindos, me deixavam fascinado. Ela me fazia querer mais.

      Não era só atração erótica o que eu sentia quando ficava perto da bailarina loura. Ela tinha uma bondade angelical, uma gentileza comovente com pessoas e uma pureza de uma garota incapaz de ofender ou machucar alguém.

      — Gosta? — Micaela repetiu.

      — Gosto — respondi finalmente —, mas não do jeito que você está pensando.

      Perdi meu olhar num copo de suco ao meu lado, absorto em pensamentos.

      Lá fora, a chuva ganhou força de novo. Ventava, muito. Vi os guarda-chuvas de duas mulheres virarem pelo acesso, obrigando-as a correr. Sorri maldosamente.

      Eu gostava de chuva. Ela dava uma aparência nova a todas as coisas, limpa. São como lágrimas, que lavam a alma.

      — Você tá aí?

      Uma mão balançou pra cima e pra baixo, me acordando do devaneio.

      — O que foi, Mi? Eu, hem!

      — Você não tá a fim de conversar, eu entendo que esteja bravo comigo. Mas eu continuo gostando de você, mesmo você estando de quatro por aquela Danny. Mas por favor, não se vingue de mim, me deixando cair de lá de cima na apresentação, tá?

      Ri, sarcástico.

      — Pode deixar. Não vou te derrubar. E mais uma coisa… Eu não tô de quatro por ninguém.

      Micaela deu um sorriso irônico.

      Meu celular tocou, e senti como se todo o meu sangue tivesse deixado meu corpo. Aquele número! Aquela foto!

      — Quem é? — Rafa perguntou não pela ligação em si, mas pela minha reação.

      Me levantei, corrri para o banheiro masculino.

DanielleWhere stories live. Discover now