Capítulo 22

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          Danielle

      Não sei se é porque eu não usava calcinha pra fazer balé, mas a mim parecia tão desconfortável usar alguma coisa por debaixo do collant.  Eu sentia repulsa só de me imaginar usando suporte pra vestir um tutu de dança.

      Me despi no vestiário, pondo em seguida meia calça, collant e polainas. O coque era o que sempre dava mais trabalho de fazer. Ainda bem que tantos anos de aulas de balé fizeram de mim uma expert em confeccionar esse penteado, tanto que nos festivais eu fazia os coques das alunas de baby class e grade 1 da minha escola.

      Sempre fui esquecida com as minhas coisas, vivia deixando calcinhas, crucifixo e estojos de maquiagem nas coisas das meninas. Por mais que eu fizesse um esforcinho pra ser mais cuidadosa, não adiantava muito.

       Um dia perdi meu celular, e como sai do estúdio voando porque meu pai estava na porta fazendo a moto roncar (motos de mais de 500 cavalos de potência têm ronco que parece urro), só me dei conta noutro dia. Ainda bem a Letícia me ligou, avisando que a Duda havia deixado meu aparelho com ela. Claro que tomei um sermão básico quando cheguei ao estúdio.

       Desta vez não deixei nenhuma peça de roupa se misturar às das meninas, que  tiravam suas calças de moletom e punham seus collants para a aula.

       Minha pele parecia mais branca vista no espelho, mais vampírica que o normal. Devia ser por causa da queda de temperatura. Se não fôsse minhas pintinhas (ou ferruginhas), meu rosto se pareceria com o de uma boneca de porcelana.

      A Nicole estava no lado oposto do espelho, já arrumada para a aula, passando batom. Mordi meu lábio inferior, sorri com malícia. Me distanciei do espelho, passei por trás da turquinha sem que me visse, e colei meu corpo ao dela, lhe dando um abraço.

      — Danielle, sua vaca! — ela se virou pra mim, um risco grande, diagonal e vermelho no canto esquerdo da boca. Se ela fizesse outro, do lado direito, ia ficar uma versão feminina do Coringa. — Olha o que você fez!

      Ri, sem evitar de achar graça no semblante fechado dela, a raiva irradiando dos olhos azul e castanho. Se ela não tivesse nascido com heterocromia ocular, que cor seriam? Sai correndo antes que a turquinha atirasse algum objeto em mim.

      — Oi, tia Danny — disseram as meninas a quem ajudei há dois dias com a maquiagem, os coques e o aquecimento.

      — Oi, meus amores — respondi me abaixando, para abraçar uma por uma. — Quem vai dar aula pra vocês?

      — A professora Teodora, na sala 2 — Camila apontou com o dedinho para o final do corredor.

      —  Legal. Eu tive aula de pontas ontem com ela.

      — Ela é brava? — Gabriela, a garotinha que viajou para mais de dez países, perguntou.

      — Ela é professora, né, lindinha. Está aqui pra ensinar e nem sempre dá para sorrir o tempo todo. Mas ela não é brava. Não precisa ter medo.

      Se eu pudesse, levava pra casa todas aquelas meninas tão fofas. Minhas irmãzinhas.

      Me lembrei de quando tinha a idade delas e morava em Nova York. Do feriado de Ação de Graças, do Natal. Nova York era gelada no inverno, e minhas colegas de balé, Kirsten e Skylar, iam me buscar em casa, para fazermos bonecos de neve no Central Park.

      A lembrança passou como um borrão. Voltei do passado ao sentir a mãozinha quente da Maria Rita tocando minha testa.

      — Você tá com febre? — a gracinha perguntou a uma vozinha quase sumida.

      — Acho que não — fiquei sem graça.

      — Você ficou no mundo da lua de repente, tia Danny — Camila percebeu.

      — Só pensei numa coisa sem importância. 

      — Meninas! Já para a aula!

      A professora Vanessa apontou para o corredor. Trocamos um aceno simpático de longe. As meninas quase me esmagaram num abraço, nos despedimos, me levantei.

      Como é bonita a percepção do mundo quando a gente é criança. Como é bonito sorrir o tempo todo, não ver maldade em nada e achar que o mundo é um lugar bom onde todos podem viver bem.

      Que pena a gente ter que crescer.

      Por que tive de crescer tão rápido e me tornar uma moça fechada, focada apenas no balé e no cumprimento de seus rígidos cronogramas, sem tempo pra ter uma adolescência normal?

      Transar com Vítor Hugo tinha sido até ali a coisa mais ousada que fiz, bem fora do meu mundo. Foi uma experiência que me libertou e me deu a certeza que eu tinha sexo, que eu era uma moça como qualquer outra e tinha o direito de fazer coisas que adolescentes fazem.

DanielleOnde histórias criam vida. Descubra agora