Danielle
Joguei um pouco de água no meu rosto e me olhei no espelho, com a assustadora impressão de que a qualquer momento a porta atrás de mim se abriria e meu ex-padrasto entraria, soltando uma risada apavorante igual a dos bruxos dos contos da Disney.
Me virei instintivamente para a porta recém escancarada, abafando com a mão um grito que queria escapar da minha garganta. Era a bailarina loura de mecha azul, linda e simpática, que abaixava uma das alças do collant enquanto entrava no banheiro.
— Preciso fazer xixi! — a porta se fechou com um estrondo que todo mundo deve ter ouvido.
Fechei os olhos, inspirando e expirando, numa tentativa vã de me acalmar.
Pus minha mochila numa das gavetas, fechei o cadeado, e me persignando com o sinal da cruz, saí em direção à sala de aula.
Os rostos das meninas eram os mesmos de ontem. As expressões faciais, olhares, posturas altivas e graciosas, de nada diferiam das que eu vi na aula que meu pai deu ontem, e no entanto, era tudo diferente. Pra mim, era opressivo.
Andei até meu lugar na barra e notei a furto que alguns alunos me acompanhavam com atenção.
Todo mundo tá vendo que não tô bem, dizia a mim mesma.
Desde pequena aprendi que uma bailarina não leva suas frustrações, seus medos e inquietações da casa para o estúdio, e que tudo isso deve ficar da porta pra fora, pra que ela possa brilhar. O desapego dos problemas pessoais nos torna leves, nos faz flutuar quando saltamos e cria uma conexão perfeita entre corpo e alma. É um caminho inequívoco para a sensação de um vôo perfeito em direção às estrelas, que se torna real quando dançamos no palco.
Isso nunca foi difícil pra mim, porque eu nasci com o balé no DNA. O balé era o meu oxigênio. Essa completude me protegia de tudo o que podia me entristecer, me impulsionava a ir além das minhas forças e me distinguia de uma garota comum. Nada me abalava quando eu dançava. Nada me jogava pra baixo.
Mas depois que vi o Laerte e todas as lembranças tristes voltaram à minha cabeça com o efeito devastador de uma tempestade que arrasa tudo, achei que pelo menos naquele dia a dança não poderia me dar alento.
Ânimo, me pedi.
Duda se postou à minha frente na barra, me olhando com preocupação ao se virar.
— Você tá bem? — ela pôs o indicador e o médio no meu rosto.
— Não. Eu vi o Laerte — respondi.
— Você tá brincando.
— Não tô. Eu vi. Meu padrasto, o filho da puta que me largou na estrada pra morrer de frio, tá aqui em Ribeirão Preto.
Minha amiga arregalou os olhos, pôs a mão em frente à boca. Eu não era de dizer palavrões, principalmente com aquele ódio visceral, junto com medo, que estavam me corroendo.
— Vocês conversaram?
— Ele fugiu de mim. Se fez de idiota, disse que não conhecia nenhuma Danny, mas aí eu refresquei a cabeça dele. Ele juntou todas as pulseiras dele, colares… Puta que pariu, Duda! O Laerte virou... riponga!
— Mas você disse que ele era um cara fino, elegante, que só vestia grife. O que aconteceu com ele?
— Eu não sei. Não tô nem aí com o que aconteceu com ele, deve estar tendo o que merece pelo que fez comigo e com a memória da minha mãe. Mas eu vi o vi, e tô em choque. Sabe o que é um fantasma do passado voltar pra te assombrar?
Manuela Almeida passou pelo umbral da porta, trazendo consigo Carlos Amaral e Faustino. Só então me lembrei que aquela aula definiria o papel de cada uma das bailarinas no espetáculo da Promoarte.
O Ato 2 de Lago dos Cisnes.
Se eu quisesse o papel que dancei há uma semana, tinha que me recompor e me entregar de corpo e alma àquela aula.
Uma tarefa desafiadora, que ia contra as minhas possibilidades naquele momento por eu estar quebrada por dentro. Mesmo assim, eu não podia me entregar. Eu ainda era bailarina, eu ainda tinha objetivos e não podia deixar que um idiota jogasse todo o meu trabalho por terra e me desestabilizasse.
— Bom dia — a professora disse com sua voz que denotava empáfia e falsidade.
— Bom dia — respondemos em uníssono.
As bailarinas terminavam seu aquecimento e botas e perneiras foram atiradas nos cantos da sala.
Antonella se aproximava de onde eu estava com um sorriso provocante nos lábios. O olhar de superioridade dela me irritava e eu ainda estava puta por ela ter passado a mão na minha bunda.
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Danielle
RomancePara Danielle, nada é mais importante do que o balé. Seu sonho é dançar nos maiores palcos do mundo e superar sua mãe, a lendária Françoise Shushunova, o Cisne Branco, um mito da dança clássica. Durante uma competição de dança em Ribeirão Preto...