Capítulo 34

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          Danielle

      Imagine se sentir amada, com todas as pessoas gritando seu nome, e vibrando a cada pirouette, sissone, grand jeté, que seu corpo executa. Imagine todo seu corpo sentir uma força pulsante que o faz se mover de forma sublime, sem limites. Poder expressar com movimentos um amor puro e verdadeiro, entre dois jovens que não têm para onde fugir e que dependem um do outro para continuarem sonhando.

      Era assim que eu estava me sentindo.

      Como um cisne.

      Um cisne que não vê nenhum limite diante de si enquanto voa, muito acima de tudo.

      No momento em que me vi no espelho do camarim das solistas, vestida como a bela Odette, com aquele tutu branco de Princesa dos Cisnes, a tiara branca em volta da minha cabeça como uma pluma, um monte de coisa passou rapidamente pela minha cabeça.

      Eu não conseguia me reconhecer, ver a Danielle quieta e comportada, mas uma princesa imponente, e ao mesmo tempo, doce.

      Essa bailarina linda sou eu?

      Toquei meu rosto no espelho. Minha boca, meu peito. As sardas, os olhos azuis, eram meus, e também minha expressão sempre doce e com uma sombra de melancolia, delineada pela maquiagem com tons sombrios.

    B Não era ilusão. Meu sonho estava se tornando realidade. 

      Maria Luíza, tão linda com o tutu de Fada Açucarada, se aproximou de mim, tocou meu ombro, e me virei pra ela. Meus lábios formaram um sorriso, e nos abraçamos.

      — Merda — ela me desejou.

      Agradeci com um obrigada.

      Olhamos uma para a outra, lágrimas começando a cair dos meus olhos. Os dedos dela deslizaram delicadamente pelo meu rosto, tocando minha tiara branca como neve. Seu sorriso me passava confiança, carinho e afeto.

      — Hoje é o seu dia, princesa — disse.

      Saímos do camarim de mãos dadas, e meu pai, com seu figurino de Quebra Nozes, esboçou um sorriso tímido ao me ver. O sorriso discreto, porém amoroso. Me apertou contra seu peito, tomando o cuidado pra não amassar a saia curtíssima que mal cobria meu bumbum.

      — Minha menina cresceu e se tornou uma mulher linda — foi o máximo que disse.

      Assenti, sem saber o que dizer. O mundo meio que, com todos os problemas que tinha, com tanta coisa errada pra ser corrigida, se tornou um lugar feliz e bonito.

      Eu o encontrei próximo às grandes cortinas. Lindo, imponente, sensual e atrevido. O meu Príncipe Siegfried. Andamos de encontro um ao outro, sorridentes. Meu coração palpitava, e minha pele se arrepiou assim que senti o dorso da sua mão tocar minha bochecha quente e ruborizada.

      — Você está linda — ele disse.

      Mordi meu lábio inferior atrevidamente, retribuindo com um toque do meu indicador nos lábios em seus lábios.

      — Eu sei — respondi.

      Eu não fazia a menor ideia de como seria entre a gente dali em diante, e não estava nem aí pra isso. Cada um teria que seguir seu caminho, escrever sua história, viver sua vida. Correr atrás daquilo que acreditava que devia ser feito.

      Mas aquela era a nossa noite. E estávamos unidos para realizar o mesmo sonho: ganhar os corações das pessoas.

      Meu nome foi anunciado. Ele beijou minha testa e me abraçou, me desejando merda, que no balé, é uma coisa legal. Sorri e caminhei graciosamente para o palco. As luzes num tom azul etéreo envolvendo meu corpo. Me tornei um cisne gracioso e apaixonado. Senti a música de Tchaikovsky dentro de mim, e deixei de ser a Danielle, para que a Odette surgisse.

      Toda bailarina um dia sonhou dançar essa variação. Ela é especial. Se eu pudesse, queria que meus braços se movimentassem como asas de cisne para sempre, ter a sensação de ser um pássaro livre que voa em direção às estrelas.

      Meu sonho hoje se tornou realidade, e ele me ajudou a realizá-lo. Nunca vou me esquecer de todas as sensações que experimentei. Do calor das mãos dele me fazendo ofegar enquanto meu corpo era erguido no alto, quase tocando minha  intimidade e me tomando por seu único amor.

      Dos seus olhos se cravando nos meus parecendo me dizer que sempre esteve aqui.

      Seus rubores.

      Fomos perfeitos do início ao fim das apresentações. A coreografia não permitia que sorríssemos. Lago dos Cisnes ė um balé sem sorrisos, de olhares aflitos e apaixonados. Mas meu coração sorria, e mesmo não parecendo, eu estava feliz. Podemos sorrir com os olhos também.

      Vítor Hugo arrasou, como sempre. Um príncipe apaixonado, de coração puro e amor casto, porém volúvel, que só cometeu o pecado de ficar cego por um sonho.

      Isso já não importava mais para mim. Quem não comete erros? Eu também não era um modelo de virtude, e se é verdade que também pecamos por pensamentos, eu estava perdida.

      Quem sabe se nos ajudássemos, poderíamos sair mais fortes. Mas não dependia só de mim.

      Fitei o teto sobre minha cabeça ao agitar os braços, imaginando o céu estrelado além do concreto.

      Quase sorri ao encontrar os olhos do príncipe apaixonado me olhando, me desejando mais do que tudo.

      Vou sentir falta de tudo isso, disse a mim mesma. 

      De cada giro. De cada salto. Dos adágios, allegros.

      Meu corpo sentiu uma deliciosa excitação, quase erótica. Sei que não devia ter esse tipo de sentimento, mas era mais forte que eu.

      Me adiantei a ele com um pas couru na ponta dos pés, mexendo meus braços. Minhas asas. Tudo foi rápido e ao mesmo tempo sútil, no momento em que suas mãos fortes e carinhosas tocaram minha cintura. Um plié, um salto, e de repente, eu estava muito longe do chão ao ser levantada por seus braços, por sobre sua cabeça.

      Era a melhor química que poderia existir.

      Com o tronco inclinado pra trás, os braços abertos e olhando para o alto, agora eu estava em outro plano.

      Ele me desceu no chão, para eu girar um último piqué e me jogar em seus braços, caindo lateralmente para uma das fotos que um dia a Alliance postaria em seu site como uma das mais bonitas.

      Bem poucos parceiros de dança conseguem algo assim. Eu duvidava que um bailarino ou uma bailarina adolescente atingisse esse momento máximo, quase cósmico. E nós conseguimos. Por mais que dissessem depois que tudo foi fruto de trabalho e muitos ensaios em busca da melhor expressividade, não era verdade; tinha algo mais.

      A música terminou, e fomos ovacionados. Ainda com meu corpo segurado pelo braço esquerdo dele, para eu não cair, trocamos um olhar de felicidade, e nos permitimos um único sorriso. Merecíamos. Foi lindo.

      O bailarino me ergueu com calma e seu rosto irradiava emoção e orgulho, mas um orgulho bom. Levantando minha mão, andamos em direção à beira do palco, para fazer uma reverance para a platéia emocionada, que nos aplaudia, assobiando e gritando bravo. 

      Lindo. 

      Eu não podia privar as pessoas de me verem dançando. Eu não tinha o direito de parar, de desistir do meu sonho. Nada foi fácil pra mim até ali. Me lembro das muitas vezes que me debrucei na minha cama chorando depois de uma aula ruim e por causa da rigidez da Letícia.

      Agora que havia chegado até ali, eu queria tudo.

      Vítor Hugo se distanciou um pouco de mim, me apresentando ao público e me saudou com uma reverance, que retribui. Então, me pegou pelo braço, saímos por um dos cantos da coxia.

      — Lindos! Arrasaram! — ouvi alguém gritar.

      Meu partner e eu trocamos um sorriso, aos poucos recobrando o fôlego. Nenhuma palavra saiu de nossas bocas, por causa da nossa exaustão. Somente suspiros. Fui a primeira a ser acometida por um choro incontido de felicidade. 

      Como é bom quando a gente chora quando se sente feliz.

      — Obrigada por ter feito parte desse meu sonho. Obrigada por ter acreditado em mim — agradeci emocionada.

      Trocamos um longo olhar. Meus lábios semiabriram e os dedos dele tocaram delicadamente meu rosto.

      — Obrigado por você existir, lindo cisne — ele respondeu, também se deixando vencer pela emoção.

      Sem que eu esperasse, já que não sentia nenhum chão sob meus pés, fui puxada pela cintura e meus braços envolveram o pescoço do bailarino. Um calor incendiário percorreu meu corpo.

      Não sei o que deu em mim. Meu corpo queimou de dentro pra fora, sentindo o ar fugir dos meus pulmões.

      Eu sempre disse a mim mesma que a vida era muita curta para perdermos a chance de viver um momento intenso. Que é melhor se arrepender por fazer uma coisa do que se arrepender por não fazer.

      E eu não mudava nunca de opinião. Mesmo que um dia voltassem a dizer que eu brincava com sentimentos das pessoas, que eu era uma garota volúvel e fútil, eu não estava nem aí pra isso.

      Me rendi, então, ao impulso da minha carne, pus meus braços em volta do pescoço de Vítor Hugo e um beijo longo e cheio de significado aconteceu entre nós.






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