|Cap. 44|

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-- Olá, Helena! -- a voz de Bjornan me toma ao abrir num forte impulso a porta. Seu corpo grande, musculoso e dourado. Seu olhar firme despejando todo seu cansaço e suas ânsias sobre mim. -- Entre, por favor!... - ele se adianta para o lado da porta, me permitindo espaço suficiente para entrar no silencioso recinto. 

-- Senhorita Helena!... -- Guez se adianta num cumprimento, me deixando percebê-lo naquela sala grande com suas poltronas da cor de um céu na madrugada quente do verão. São  4 poltronas confortáveis e espaçadas no amplo quarto. Os tapetes que cobrem o chão são igualmente escuros, mas os traçados dourados tomam formas desconhecidas e entorpecem a minha imaginação que não permite espaço para encarar a realidade que me atormenta. Estou vidrada no ambiente, nesse espaço antes desconhecido e admiravelmente misterioso. Sua luz bruxuleante, seu azul escuro que cobre as poltronas e é fundo para os tapetes adornados em ouro que rastreiam uma história pelo chão, tudo isso, todo este novo mundo que foge da opulência mitológica que cobre o resto da casa me consome neste pequeno instante de devaneio e surpresa. Aqui, nesse lugar novo, o místico nórdico parece dar espaço ao misterioso coração daquele que eu sonhei ser um feliz, astuto e desavergonhado guerreiro. 

- Helena?!... -- escuto a voz de Bjornan, o som grave e firme, os passos que se aproximam e as mãos ásperas e fortes que tentam tocar meus ombros delicadamente. -- Algo passa contigo? -- ele acrescenta ao me virar em seu encontro, seus olhos com o brilho da preocupação.

-- Oh!... me desculpem! Acabei me perdendo na decoração do ambiente. Acredito que nunca tenha entrado neste quarto, senhor. -- respondo ao me livrar de seu agarre carinhoso e desanuviar a cabaça para uma conversa que realmente interessa. -- Peço desculpas por isso. -- acrescento

-- Não há problema, não precisa se desculpar.  -- ele diz

-- Então, por favor, gostaria que me explicassem o motivo do chamado. -- inicio sem firulas, esforço em um sopro as palavras que queimam minha mente.

-- Precisamos estabelecer alguns preparos para o noite de hoje. -- Bjornan diz

-- Entendo... E quais são esses preparos? Estão ligados ao homem morto de momentos antes? -- solto de uma vez a notícia, finco sem rodeios a necessidade de respostas para os dois homens que ocupam junto a mim a misteriosa sala.

-- Como sabe que ele está realmente morto, Helena? -- Bjornan questiona curioso, seu rosto um mistura de surpresa e divertimento que inutilmente tenta forçar para fora na tentativa de mascarar suas preocupações.

-- Mirha diz que Guez nunca erraria algo assim. Ela não está certa? Devo crer na sobrevivência deste ser?

-- Não, minha irmã acertou no que disse, Helena. Aquele homem está morto, e sempre esteve quando ousou cruzar a linha de seu destino com a deste garoto aqui. -- Bjornan diz apontando para Guez, seu rosto ainda mascarado por um divertimento que aperta suas feições ao tentar amenizar as preocupações que parecem ocupar seus olhos.

-- Errei uma vez, -- o silêncio que tomava os lábios do jovem e belo garoto é quebrado, seu corpo magro e firme, suas roupas velhas e alinhadas em orgulho, sua voz determinada pelo rancor contra si surgem engasgadas pelo ar. -- mas não pretendo me dar ao luxo de uma segunda vez. Então sim, aquele homem sempre esteve morto aos meus olhos. Mas esses não são assuntos tão importantes, essa vida que se foi não vale o tempo valioso que estamos perdendo. -- sua fala é direta, cortante e fria. As sensações congelantes que me tomam ao ouvir a falta de afeto sobre a vida do outro, a ausência de qualquer sentimento humano diante da morte é angustiante. Sei que a vida deste assassino não deve me trazer a mínima empatia, mas escutar toda essa ausência nos lábios secos e belos do companheiro de meu irmão me consomem em medo e agonia. Pois para alguém que não sente o mínimo de remorso em retirar uma vida, como esperar que ele ame e cuide de qualquer outra?!

-- Seu maldito! -- a voz raivosa que escuto é clara na imagem que se forma em minha mente segundos antes de me virar para encarar o forte corpo que se estende abrupto sobre a sala. André surge, seu corpo firme, a cólera estampada na contração muscular que o envolve, nos olhos cegos para o ambiente e que miram apenas um destino, nas mãos em punhos que parecem loucas por uma boa briga e a boca firme que se aperta diante do ódio que exala. -- O que você fez? -- Ele segue em passos determinados para Guez, seus braços e suas mãos fortes tomando o colarinho da velha camisa do jovem garoto. É uma imagem violenta, um pequeno instante para o ataque. Sinto como meu irmão parece se segurar, como está preso na espera de qualquer abertura para destroçar o corpo magro que agarra. O ódio enche a sala, o rancor, a amargura, a cólera, a repulsa, o medo, a desilusão, o cansaço e o vazio. É tudo isso que vejo, tudo isso que lembro ao encarar a cena que se monta diante dos meus olhos e dos meus lábios que, fazendo conjunto com meu corpo, se mantêm calados e rígidos  no anseio e no medo para o próximo ato. 

-- O que acontece, senhor? -- a voz de Guez é indiferente diante de tudo, seu corpo curvado em direção as mãos fortes que o agarram em desespero, ao corpo grande que exala uma animalidade que foge ao real. O ambiente é denso em sensações, é uma disputa de poder entre esses dois homens. 

-- Você... seu maldito! -- André segue, a raiva crescendo progressivamente ao perceber a indiferença nos frios atos de Guez. A loucura parece o invadir, se projetar em raiva e necessidade de sangue. -- Você o matou. Matou o que poderia ser nossas respostas. 

-- Aquele homem não sabia nada. Era apenas mais um assassino que foi contratado por alguém que consequentemente foi contratado por outro alguém. Não se faça de tolo, Jack, não tínhamos nada. A única coisa que aquele verme conseguiu oferecer-nos foi ameaçar a vida do que devemos proteger com a nossa própria.

-- Não!... -- o som é retumbante. O desespero estampado em um quase grito. -- Você não deve se arriscar assim, muito menos às mulheres que te acompanhavam no passeio. Você perdeu a razão, esqueceu o treinamento que teve e o motivo maior por estarmos aqui.

-- Não, senhor... eu não me esqueço de nada. Nada! Todos os dias e todas as noites, todos os segundos que me perseguem enquanto estou viva me forçam a lembrar. Eu, mais que ninguém, eu... eu vou acabar com tudo isso, e não permitirei que qualquer mal atravesse meu caminho e se sinta no direito de continuar livre.

-- Até mesmo quando o mal venha a ser você? -- André questiona ainda preso a tensão que contamina o ar que respiramos.

-- Principalmente, meu senhor. Mas não se preocupe, e digo isso para você também senhorita Helena, -- os olhos de Guez me fitam agora, um riso dissimulado e irônico cobre seu rosto magro e amargamente belo -- não clamarei ao seu irmão que destrua por si o mal que há em mim, nem levarei sua alma comigo ao inferno. Quando a hora chegar, André, eu mesma eliminarei o resto de vida que há em mim. -- Guez finaliza, seus olhos turvos e fagulhados de inúmeros sentimentos que sua boca não profere, enquanto desprende forçosamente a mão de André de seu colarinho.

-- Não, você nunca sairá do meu lado! -- André diz num impulso, suas mãos retornando violentas a roupa de Guez, seu corpo se aproximando e colando ao do garoto, seus lábios invadindo e agredindo o espaço individual do homem a sua frente ao lhe dar um beijo apaixonado. Todo esse momento me domina, me encarcera e me agoniza. A tensão, o desespero e o ódio camuflam o sentimento mais perverso e doloroso que cobre o coração de meu amado irmão. O amor, esse sentimento que neste momento parece descer amargo diante da cena que como erva daninha se alastra diante dos meus olhos, é o que enlouquece a pureza de alma que André alguma vez teve. 

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