|Cap. 30|

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O mundo parece rugir no silêncio, é como  se meu corpo sentisse a pressão infinitesimal da maldade que nos espreita de longe. Acordo aturdida, suando frio, meus braços e pernas pesados e cansados como se mil toneladas os esmagassem. É um navio que aporta sobre meu corpo, me prende ao mesmo tempo em que minha mente reage ao mundo silencioso da enorme casa. 

Bjornan dorme ao meu lado, posso escutar seu sono pesado, sua respiração alta e sentir seus potentes braços que me apertam em contato e posse. Meu corpo tão já acostumado ao calor bom de dormir assim aceita calorosamente, mas minha mente ligada ao medo e ao pressentimento torto que me toma faz acender em meu peito a vontade louca de levantar. Assim o faço, retiro com delicadeza os pesados braços de Bjornan que agarram meu corpo, respiro três incontáveis vezes antes de forçar minhas pernas para um chão frio, para atender ao desconhecido que me chama, me dando coragem para aguentar o pior que sinto estar por vir.

Me levanto. Caminho em passos largos e lentos, uma mistura de ansiedade e medo tomam meu corpo, o suor fino me banha as costas e os seios enquanto desço as escadas que dão para a sala principal, e meu temor surge firme nas feições contorcidas do rosto de meu irmão. O ódio tem nome. O desespero tem olhos escuros, vidrados e loucos. O medo tem uma tez bronzeada e traços duros e másculos. A dor se estende em lábios apertados, cinzelados e que parecem querer soltar um sinistro grito, urrar com a mais violenta das cóleras, clamar a Deus que leve sua alma ou que salve sua vida. É assim que vejo, é isso que posso ler nos traços carregados de André. Seu corpo magro e firme, a força que sempre exala de seus poros, as roupas e o cabelo desmantelados pela correria , os punhos cerrados, a beleza pagã e a voz... esse som que me faz sentir a morte e que nunca me conta nada.

-- Helena... 

-- O que aconteceu, irmão? -- digo num sussurro, minha voz presa na garganta e sem coragem de se levantar pela verdade. Pergunto, mas não busco saber nada se o pudesse. O que vejo estampado em seus olhos me faz desejar nunca saber.

-- Pedro... -- ele diz sem ressalvas, seu corpo já não suportando o peso da cruz que carrega, ou sua mente insana e inteligente que calcula todos os seus atos escolhendo a melhor maneira de prever e açoitar os demônios do futuro. -- Pedro está solto. Ele fugiu. -- novamente sua voz ganha força, ergue sem cerimônias a resposta que reivindiquei. 

-- Como fugiu? Eu... Meu Deus! Você ficou sabendo disso agora?... Precisamos chamar Bjornan, avisar Mikhail....

-- Pedro pagou o peso de sua maldade em ouro para os guardas do navio de prisioneiros. Ele fugiu tem alguns dias, mas só hoje consegui mensurar a imensidão desse estrago e tentar planejar algo que possa o conter.

-- E conseguiu algo? -- minha voz sai rasgada, busco ar para meus pulmões na tentativa de resfriar meu corpo e acalmar meus ânimos no desespero de toda aquela conversa. O ar da sala é espesso, um mar de sentimentos ruins que parecem querer afogar a nós dois.

-- As vezes penso que esse é meu verdadeiro carma, nunca conseguir nada. -- sua voz sai fria, passada entre os segundos que a enchem de uma calma que me parece tão repulsiva. -- Vamos pegar Pedro, Helena. Eu pegarei este maldito, o farei pagar por resucitar o inferno na vida de tantos inocentes.

-- Precisamos avisar Mikhail e Alexia! -- digo sem parecer escutar o que meu irmão fala, mesmo que no mais íntimo suas palavras me cortem em pedaços. Pensar nos outros, falar sobre a inocência de outros é como se afirmar sem alma, aceitar um destino miserável, reter em seu coração a culpa e com ela um espaço amargo no inferno. -- Escreva uma carta para aqueles dois, André! Conte tudo o que acontece aqui, você tem essa obrigação. -- finalizo ao afirmar a mais pura inverdade, tecer mais uma mentira enquanto forço sobre os ombros cansados de meu irmão mais essa responsabilidade. O homem à minha frente, esse garoto bonito e que um dia pareceu tão feliz, não nos deve nada. É apenas em sua bondade, em sua misericórdia que seguimos sugando o pouco do que lhe resta de vida. Este é o nosso pecado, o pecado de colocar a felicidade de André valendo tão pouco.

-- Muito bem, irmã, farei como queira. -- ele apenas afirma, sua expressão já perdendo os rasgos do início da madrugada, seu rosto se tornando uma máscara impassível. 

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