Após o jantar calmo, delicioso, caloroso e feliz entre as boas companhias que tanto estimo, partimos para a saleta de descanso presente no primeiro andar. As taças delicadas e cheias de um doce vinho do Porto aquecem e relaxam nossos músculos, nos prepara para uma conversa informal e me acalenta diante da boa vida que levo. Meu interior está iluminado, minha mente e meu coração só encontram felicidade. Meus olhos são todo amor.
-- Não creio ser o melhor momento para este tipo de conversa, mas, como lhe prometi, irmã, direi a que vim. -- os olhos de André me encaram, a cor turva de seus olhos demonstram-me uma emoção, um sentimento desconhecido e, ainda sim, avassalador que está infiltrado sob sua dourada pele.
-- O que diz, irmão? -- minha voz sai rasgada pelo susto, pelo repentino de toda tensão. Não estou preparada, pois deixei que meu corpo se acostumasse com o bom momento e que minha cabeça se esquecesse de todo e qualquer problema. Meus lábios formam as palavras, mas meu ser ainda se recusa a reconhecer a gravidade da situação que toma o semblante de todos.
-- Contarei aquilo que preciso, e depois lhe deixo o espaço para que pergunte o que queria. -- ele inicia ao me fitar firme, suas palavras alinhadas em um único tom, o ardoroso sentimento de pouco antes já desaparecido. -- Bjornan, preciso que acolha por alguns dias a Mullan. -- ele continua ao virar-se para o homem ao meu lado. -- Ela está protegida no navio por agora, mas prometi à esse pequeno maldito aqui que lhe daria alguns dias de paz e descanso. Assim peço que me ajude e me conceda esse espaço e proteção por algum tempo antes de novamente partirmos. -- sua voz segue firme, assim como o aceno de cabeça do belo loiro ao meu lado. Seus olhos, verdes e límpidos parecem compreender do que se trata, aceitar cada palavra.
-- Quem é Mullan? O que se passa aqui, André? -- minha voz sai inquisidora, meus olhos confusos pelo pequeno momento esquisito.
-- Prendemos Pedro, Helena, mas ainda precisamos seguir com os planos para que nenhum dos outros sócios escapem da merecida sentença. -- ele diz calmo. Frio.
-- Que planos, maldição? E quem é Mullan? -- minha voz agora se mostra irritada, meus nervos indo a flor da pele diante do desentendimento e de uma horrível certeza. Estou com medo de sua resposta, mas não posso fingir que ela não existe. Estou com medo de saber e não mais conseguir sair, ou mesmo não conseguir continuar já depois de suja e marcada. Não sou estúpida do passado da minha família, nem da vida que meu amado irmão escolheu levar, mas procuro sempre ser indiferente - pela covardia - do peso que carrega para lavar nossas almas. Meu pequeno irmão escolheu o caminho do inferno.
-- Mullan é uma jovem que resgatamos, Helena. Uma jovem que tiramos das mãos doentes daqueles bastardos que a queriam explorar sexualmente. Esta mulher, esta menina irá nos ajudar a destruir todo império de tráfico de escravos sexuais construído por aquele verme. Um trabalho difícil, eu mais que sei, então não me olhe assim como se tivesse nojo ou ódio do que intento. É necessário, minha amada irmã. É necessário que alguém se sacrifique para um bem maior, para o fim desse pesadelo. -- ele quase se entrega ao cansaço que toma voraz seus belos e amendoados olhos, que suga de seus lábios bonitos o que foi uma bela e empolgada voz, a deixando como um sussurro daquilo que se estende como necessidade. A frieza ainda o toma, a ausência de alma me surpreende. Seu corpo parece vazio agora, sem a vida que tanto nos aproveitamos.
-- Os planos já estão traçados, não há o que mudar e nem para onde fugir. Precisa ser forte, meu caro amigo. Precisa ser forte por todos nós! -- Bjornan fala pouco depois que o silêncio traga todo ar do aposento, deixando a tensão densa e castigadora tomar nossas vozes ao passo que quase engole nossa razão. -- Agora precisamos dormir, já está tarde e sei que os dois ainda estão cansados da viagem. Que Mullan venha para a casa, que se acomode aqui por alguns dias antes de seu destino final. Sei, André, que cuidará dela como a joia mais preciosa, a irmã mais amada. Sei que protegerá a vida dela com a sua própria e, ainda mais, que um dia estaremos livres de todo esse inferno. Que alcançaremos a felicidade. -- ele finaliza ao puxar meu corpo ao seu encontro, me apertar com seu forte braço e assim afastar de mim os fantasmas do agora.
-- Obrigada, meu amigo! -- André agradece, seus olhos ainda perfurando aos meus na busca por alguma certeza, por alguma pergunta, por qualquer traço de aceitação. O silêncio novamente nos toma, bem como tomou a voz do garoto que nos acompanhou durante todo o tempo. Meus olhos repousam por instantes sobre a frieza cálida, sobre o semblante suave, sobre um corpo que respira e não tem vida. Guez está parado, quieto e imerso em silêncio. A cena é única, incomparável com as incontáveis vezes que os encontrei, meu irmão e este pequeno garoto, juntos. Não há mais cumplicidade, não há mais carinho ou luz entre os dois. André firmemente não o olhou uma única vez durante toda nossa conversa, não procurou sua força durante tal tempo difícil. Talvez seja pelo momento, seja pelo destino que os consome tão voraz e inescrupuloso. Deixamos em suas mão a nossa paz. Eu deixei em seus braços qualquer responsabilidade e ainda demonstrei a eles o meu sorriso. Eu fui parca e maldita diante de todo sofrimento que visualizo agora.
-- Eu gostaria de apenas uma coisa, irmão. -- minha voz rasga o ar quando meus olhos se desviam da imagem embaçada de um belo garoto silenciado pelo desconhecido, sozinho em um mar de sombras que provavelmente o consomem.
-- O que gostaria, Helena? -- sua pergunta é resignada.
-- Que envie uma carta para Mikhail e Alexia. Eles se preocupam contigo. Com nós! Quero que conte seus planos, que os deixe informados do que se passa. Eles merecem isso, irmão! -- ouso as palavras sem mesmo acreditar em cada uma delas. A coragem de exigir, a ganância de tomar. Ninguém merece nada se este triste homem, sangue do meu sangue, não merecer antes. Apenas devemos, devemos e devemos ao passado ao presente e ao futuro. Mas ainda sigo aqui, sem queimar minhas bochechas pela vergonha, imperando em minha voz que ele submeta seus planos tortuosos àqueles que estão felizes. Preocupados, mas felizes.
-- Muito bem, irmã, farei o que pede. Enviarei uma carta para meu irmão e sua esposa, mas em troca te peço que acolha a Mullan em sua amizade. Serão tempos difíceis, e quero que essa pequena mulher guarde um pouco de felicidade para recordar.
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Desejo Viking
RomanceAlguém sabe quando o amor surge? Alguém sabe quando deixamos de temer perder a liberdade para ficar ao lado do outro? O amor seria mesmo essa faca de dois gumes, que de um lado te dá alegrias nunca antes vividas e do outro te toma alegrias nunca mai...